terça-feira, 17 de março de 2009

Experiência #010

Hoje, acordei de madrugada, e Fortaleza estava sob o véu espesso da neblina. Cinco e qualquer coisa, no relógio, sigo no taxi. Elevador, sobe e desce, chave de um carro, estou de volta, novamente à estrada cinza, com o sol camuflado pela água. Chego ao Hospital do Câncer, minha tia está recuperando-se de uma cirurgia na tireóide. Dia no hospital. Minha energia está baixa, durmo, durmo, alternando-me entre serviços pequenos (conversas amenas, copo de água, lembranças, pegar mamão, profissões, abrir janela, família, ligar televisão, curiosidades, abrir porta do banheiro, chamar enfermeira... receber enfermeira, auxiliares de enfermagem - uma, bom dia; duas, pois não; três, certamente; quatro, à vontade... auxiliares de limpeza, o médico-residente de plantão, auxiliares, uma, duas, acender luz do quarto, telefone, telefone, fechar a luz do céu). Durmo, durmo, durmo. Será que eu sonhei? O médico faz uma muda dos curativos, na altura da garganta... fala da sua mãe ("ela é teimosa") enquanto retira uma fita branca, de dentro da garganta, algo que tinha uma textura visivelmente plástica (estou equivocado!). Sofazinho estreito. Minha tia está meio que tonta: aplicação de um remédio, vômitos, soro, trocar de roupa, pedir alta. Da cama para a cadeira. Dirigir de volta para casa - com ela, tonta, dentro do carro. Eu, tonto com ela. Estranho - chuvinha fina, hora do rush. Sinais. Ela atravessa a porta da cozinha, não fala com ninguém, meio que joga suas roupas, sem atenção mas ainda delicadamente... entrega-se imediatamente à cama, lençol fino, um tchau silencioso. Ônibus, caminho de volta: espero 30, 40minutos? Chego ao terminal, 15, 20minutos depois? Fila, vazia - que bom, que ruim!? Espero a próxima condução, 40, 50minutos? Sigo, cheiro de perfume barato, sufocado pelo vizinho de banco e um ônibus lotado. 10 minutos de caminhada, estou pensando várias coisas. Banca de revista. Horário de trabalho. Duas horas depois, chego em casa. Dorje, meu cãozinho - ainda doente. Céu? Ainda cinza. Li o jornal - enfadonho. Eu? Ainda por aqui. Ainda, por, aqui... Qual a diferença entre isso, e um existencialista? Entre o enfrentamento do belo e do trágico com as espadas da dignidade? Gotinhas, gotinhas oscilantes, vazam pelos dutos que se mesclam ao sangue da carne viva. Tenho um texto do Átila Montenegro, à minha frente, um texto que gosto muito, lá (vocês acreditam em mim?), está escrito: "As goteiras pingam no vácuo. Se tudo desabasse e não restasse mais eu, então só haveria vida... energia./ Efeitos colaterais". Sentado, do lado de fora do quarto, enquanto as mulheres exercitam a intimidade do corpo feminino (ajudar a trocar de roupas, calcinhas etc), lembro-me que meu avô também foi operado naquele mesmo Hospital, lembro-me de duas visitas, rápidas, que fiz a ele, ainda na UTI, lembro do quarto... dou-me conta que não são apenas lembranças, recupero a razão, e enxergo ao meu redor: talvez, 10h da manhã, ora para que meu organismo acorde, e vejo pessoas rezando, outras conversando, outras comendo, outras transitando... posso ouvir lágrimas? Vejo, também, uma estátua piedosa. Estou numa pracinha de convivência, com mesinhas, comidinhas. Sinto-me absorvido com tantas demandas e pedidos de viva, abro-me e respiro, apenas e tão somente. Volto-me, então... qual a diferença entre o Existencialista e o Pragmatista, se, aparentemente em comum, ambos não fujimos desse encontro com nós mesmos, se ambos, eventualmente no campo da Psicologia, poderíamos dizer-nos, nós dois, Humanistas? Como Pragmatista, acredito que o significado que atribuo a essa experiência é diverso do significado, dos enquadramentos, dos postulados, crenças, conceitos, com os quais um Existencialista manejaria as mesmas "realidades". A ação, por si, ou em si, não basta para abalizar-nos acerca da natureza da intervenção - é preciso auscultar a experiência implícita. (Empatia, por Empatia, não é uma prerrogativa exclusiva dos Humanistas - veja na Livraria Cultura, e conclua por si mesmo). Eu gostaria de, em casos como esse, ao sentir o que sinto, ao navegar onde navego, gostaria de acreditar que há outro lugar melhor para irmos. Gostaria de acreditar que a minha experiência pudesse estar livre da concretude da vida, da Organicidade, do mundo... porém, para sê-la, tão experiencialmente quanto possível, é preciso que me mantenha com os pés tão vivos quanto possível, tão nesse chão quanto possível. E, daqui, fazer o moinho girar com o vento que não é bem meu... nem o moinho, nem eu. Agora, pãezinhos e reunião.

(...)

A Silvinha me falou, há pouco (pouquíssimo tempo), se a questão da Aceitação Positiva Incondicional não poderia ajudar-nos a adentrar o "mundo louco" sem destruir nossas expressões genuínas de vida... A princípio, tem a ver sim; mas não sei se vou conseguir elaborar sobre isso, agora, estando tão fraco. A idéia básica de Aceitação Positiva Incondicional é que ela reconhece as sintonias e ressonâncias entre o universo e a vida, a partir de uma legitimidade experiencial. Em outras palavras, a Aceitação possibilita, em mim, um espaço de fluxo que esteja afinado com os movimentos que não se excluem no meu Organismo. Para que seja uma atitude possível, é preciso uma boa, boa dose de abertura - e acho que de ternura, como um processo decorrente.

4 comentários:

  1. Respirando... Com você...

    Obrigado!

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  2. Gracias pelo oxigênio, Thyers. Há,braços.

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  3. Amigo, também fui seguindo tua respiração, passando pelos cômodos, becos da experiência. Uma sensação múltipla me atinge no percurso: é entendiante, é amargo, é aprisionante ... quem bom seria se eu pudesse sair. Mas quem gostaria de sair? Para onde? Só se pergunta se seria possível sair de um lugar quando se percebe que aquele é um lugar e não o lugar, quando já se atravessou ou se entreveu, pelo menos, outra dimensão, outra possibilidade. Talvez o Eu Sou que algumas vezes começa teu texto, ou talvez a Eternidade como tu já colocou em um dos primeiros posts desse blog. Não parece que se trata de substâncias, nem substância diferentes, mas plataformas qualitativamente diversa que se comunicam e se cruzam, mas, semelhante a camada da terra, construida através dos depositos do tempo, forma-se linhas de pedras e sedimentos específicos. Algumas horas tu fala de um segmento mais profundo, outras de um segmento mais "superficial" e no pano de fundo o processo todo, sem identidade fixa, assim como a terra não o tem. Isso está na base da experiência que, por não ser uma experiência individual, ou como disse em posts anteriores, uma experiência pessoal separada da de outras pessoas, animais e tudo que é vida, é possível trazer esses contornos eternos para o que se escreve. Mas não consigo entender como a eternidade da vida pode ser trazida para dentro do pragmatismo, principalmente o de Rorty´. A categoria de experiência deixa de ser individual, é verdade, para os neopragamatistas, mas também deixa de ser organísmica: toda experiência é construção linguistica de uma determinada comunidade humana. Essa comunidade humana compartilha, limitadamente, possibilidades de encontros, idéias, sentimentos, discussões e etc. Com certeza eternidade, por definição, não está na base da idéia de comunidades linguísticas. O caminho de rorty em buscar a virada linguística e derrubar, anindo-se ao pragmatismo, a metafísica está na sua descrença de unir orquídeas selvagens e Trotsky. Tu, por outro lado, está sempre beirando as experiências absurdas, não cabíveis nas comunidas humanas linguísticas, limitadas, e, na verdade, parece que é justamente essas comunidades que te impedem de encarnar isso ou explorar ainda mais isso. pra Rorty: "Talvez o melhor modo de descrever o interesse descrente em filosofia é dizer que o infinito está perdendo seu encanto. Estamos abraçando um senso comum finitista - toranando-nos pessoas que creem que, quando morremos, nós apodrecemos, que cada geração resolverá velhos problemas, apenas enquanto cria problemas novos, que nossos descendentes verão com dezprezo e incredulidade muito do que fizemos ... Estamos ficando contentes em nos vermos como animais consertadores, que se fazem enquanto seguem em frente". Pra mim, esse é o motivo da fragilidade de rorty: ele abriu mão das orquídeas selvagens unidas a Trotsky e isso possibilitou que ele tivesse a "força de ter fraqueza" para recriar dentro do terreno que sobrou: as comunidades humanas linguísticas. A fragilidade é de quem abandonou o infinito. A tua fragilidade, e eu posso estar muito enganado nisso, me parece muito mais aquela de ser pedido constantemente para abandonar o infinito. A experiência implícita traz o infinito em seu bojo, porquanto encarne na limitação (talvez um tipo teórico de forma é vacuidade, vacuidade é forma, não sei). Mas ainda que encarne ela não se limita a isso. Não vejo como a Vida, fluxo vital, experiência formativ possa estar circunscrita nos conceitos de comunidade humana linguísticas e no contextualismo, ainda que não relativismo, que nisso se insere. Eu gostaria mesmo de ouvir essa resposta, porque talvez pudesse me ajudar. Bjo

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  4. Yuri, Vou responder. Com certeza vou te responder. Preciso de ar para respirar, sentir e pensar. Mas vou responder. Bjus.

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