quarta-feira, 18 de março de 2009

Experiência #010 (continuação I...)

... Não se passou um dia. O relógio, o sol e a chuva parecem os mesmos, ainda os mesmos. Ainda estou dentro do Hospital, apesar dos sapatos, das roupas, do chão, dos ares serem outros. Outros. Queria compartilhar alguns lampejos de ontem-que-ainda-é-hoje, percepções de mim, inseridas no mesmo campo aberto, adentrado, vivenciado. Fiquei olhando minha tia, deitada, meio tonta. A televisão estava ligada, "Bom Dia Brasil" - péssimas notícias do Brasil, péssimas, ao meu ver, para classificar a alvorada como "boa", péssias informações para ensejar um bom dia. Minha cabeça estava ficando meio tonta, olhando para cima, e vendo as reportagens. Me pego, nesse ziguezague, entre sustentar a noticiário e não suportar a tontura, e vejo, ao meu lado, minha tia, de olhos fechados. Não sei se alguma coisa alí poderia ser real, ou se ainda estou nos ciclones da vertigem. Todos os profissionais, funcionários do Hospital, que adentraram a sala me relataram que, ontem, se sucedeu um dilúvio, sem fim. Não escutei, não percebi. Acho que o mundo tinha acabado. Me lembrei, em 1988, eu tinha 6 anos, sentado, na cama da minha tia, ajudando ela a se levantar, ela no pós-operatório do seu parto-cesariana. Que absurdo, distante, lembrar disso, e lembrar que o quarto do Hospital, ontem, que estava na penumbra dos meus 6 anos (há 21 anos atrás... acho que o tempo não passou!). Algumas vertigens (semelhantes) do medo-empático (do outro, do ser amado, que sofre e tem medo). Olhos fechados, e corpo tão frágil, tão vulnerável... ali, completamente refém da benesse de um organismo terceiro - eventualmente, um organismo que se considere estimado e amado. Não sei se isso ajuda, reconforta... mas sei que era, apenas, um corpo frágil. Lembrei da minha própria tontura, três semanas atrás, e o quão rapidamente, por um simples agravo, podemos deixar de sermos aquilo que reconhecemos ser, acreditar, expressar. Quero dizer, por exemplo, minha tia - e para quem a conhece de tão próximo como eu - deitada, cançada e tonta, sem poder, se quer, levantar sozinha. Logo minha tia? Não porque ela seja minha parente, mas, para quem a conhece, frequentemente, gritando, brigando, lutando, desafiando... sempre tão "certa" e metódica, e ontem, o sempre, já não era o mesmo. Agora, na casa dela, já instalada, escuto dela, pós-operada, cobrando velocidades e atitudes do seu filho mais velho (o mesmo que nasceu em 1988), que deveria ir trabalhar, não chegar atrasado no estágio. De quê é mesmo que adianta, "sempre" tão forte, tão firme, tão resoluta, tão direta, tão inteira de algo que, tão passageiramente, escapa-lhe as mãos, como areia ao vento das ampulhetas... nada restava, ali, naqueles instantes, da minha tia-Feitosa, apenas, uma mulher frágil e vulnerável, como qualquer outra que conheci, de sentimentos e soluços emprestados aos rostos dos meus clientes, como eu próprio, também, frágil como me conheço e me enxergo, humanamente dependente de tantas coisas, tantos processos e coincidências da vida. Eu não sei qual é a graça dessa batalha que ela trava pelas crenças e vestígios de certezas dela (herança, hipoteca, hipóteses?), eu não sei, em mim mesmo, a quê isso tudo serve. Clodovil morreu. Já senti uma dor de tristeza e de partida, durante a tarde, ao ler sobre o estado grave na UTI, pós Acidente Vascular Cerebral e parada-cardíaca. Morreu. Eu apreciava, imensamente, a velhice safa e desenrolada do Clodovil, uma alegria inteligente, uma generosidade de sensibilidade e elegância. Era um tipo de moda espiritual. Pois o Clodovil deixou de existir aos meus olhos... hoje, no Jornal do Meio-Dia, na Globo, escuto sobre o velório, e me pergunto se o Clodovil teve a oportunidade de se despedir. Bem, eu não tive. Ainda não chorei dele. Chance, pelo menos, de agradecer por conseguir, de alguma maneira, vislumbrar tanto de mim, nele: da sua coragem, de sua ousadia, e de uma capacidade combativa, de enfrentamento do absurdo e do caos. Outra geração, e, ainda assim, os problemas e desafios tão meus, tão contemporâneos. As agulhas do Clodovil valeram por sua partida, subta ou não!? Não tenho como avaliar, nem sobre ele, quanto menos sobre a minha tia. Posso tentar dizer por mim mesmo. E chego a conclusão que, na minha experiência, meus esforços ilusórios, múltiplos e diluídos, parecem não valer muita coisa além da minha própria legitimidade e liberdade de buscar exercê-los que, por sua vez, não valem em si mesmos. É isso. O quê sobra e escapa de sentido (pessoal) à morte, à tudo que a morte leva? O que sobra, de único meu, à força da morte? (Hélton, se houvesse um Self próprio, algo mínimo e independente, que cercanias e capacidades próprias, ela deveria conter algo próprio, que, eventualmente, não estivesse sujeito à ventania da morte... o Self também é levado, e não precisa nem a morte se aproximar - basta cumprimentar, de longe. A morte acena, e o Self, como gelo exposto à sol, derrete-se, fulminantemente, no colapso dos seus adereços). Os vestidos do Clodovil, minha saudade, as lembranças das brigas e cobranças bem-intencionadas da minha tia, o quê fica e a quê preço? Uma diferença entre o Existencialismo e o Pragmatismo é que, de um ponto de vista Organísmico-Experiencial, minha experiência não existe sozinha, não existe fora de um contexto, e não tem um valor independente por si, em si e para si. Minha experiência não precede a vida. (Humildade experiencial ante o mistério? Reconhecimento de que a expressão humana não é a medida para compreensão do universo e seus mistérios?) E, no dia em que eu me convencer que eu estou preso na existência, (posto que a existência antecede a essência e minha experiência), de que não haverá, portanto, espaço e ar e vida além dos indivíduos e suas histórias, e além do meu próprio cansaço, então, não há mais Organismos, Vidas, Interrelações, Redes de Crescimento... Então, não há Pragmatismo e abertura, haveria, apenas, a "existência", um sistema fechado em seu circuito imprevisível de desdobramentos. (Fechado, ainda que criativamente fechado!) Parece muito, porém, aos meus olhos, é pouco demais. Eu preciso, experiencialmente, ter a capacidade de navegar numa vida que se recria, inclusive, além dos dramas humanos. É daqui, de onde estou como parte e expressão da vida mais ampla e presente, que retiro oxigênio quando a existência, em seus desmantelos e delírios, enxerga que não há caminho e alternativa outra se não permanecer nela e em suas narrativas. Parece-me que a diferença prática, e que me coloca à favor do Pragmatismo, é uma adesão pela surpresa, pelo inesperado, pelo improvável, às vezes, literalmente (!), pelo impossível. Simplesmente, a Morada da Incerteza. Porque a rigor, Pragmatistas e seus mergulhos experienciais, não acreditam seja na vitória, seja na derrota, seja na conquista, seja no fracasso. Pragmatistas não podem dar-se ao luxo de "antecipar". (Porque não existe experiência antecipada ou postergada). O esforço gigantesco do Pragmatismo não é o de, justamente, contrapondo-se às Filosofias Continentais imobilistas do Velho-Mundo, refratar um projeto de verdade que seja sensível, ou que seja racional? Se não há com o "quê" se agarrar e profetizar, resta-nos, v...i...v...e...r..., e buscar sermos e encarnarmos o máximo do que nos significa estarmos vivos e inteiros. Abertura à vida, e não apenas a uma ou outra dimensão particular do viver humano (como, por exemplo, a existência). A rigor, a experiência não pertence às fronteiras da existência, ela, experiência, oscila entre o nascer e o morrer que caracteriza a vida. Pois é: não acho que faça sentido lutar pelas atitudes e crenças do Self, fazer, por exemplo, no caso da minha tia, com quê o Organismo dela lute, lute, lute para manter tudo que o Self dela acredita, manter isso intacto - v.g, cobrar do flho dela a maldita responsabilidade que o nefasto Self dela acredita ser necessário. Ela morre, ou, não morrendo, algo acontece, que muda a capacidade dela de sustentar aquele Self, valores e posturas específicas, e tudo que ficou para trás foi, apenas, rastro de um Self que, uma vez nunca existindo como realidade-própria, agora foi silenciado pela vida. (Vou responder Hélton em outra postagem, à noite... Não faz sentido nenhum, para mim, facilitar Selves... e que isso não tem a ver com facilitação de Regulação, Atualização e Formatividade, ainda que você inclua, na sua reflexão, o fato de que o Self é também um desdobramento e um atributo emergente da vida e das Tendências. Mas não acho que uma "parte" da vida, o Self, possa ser tomada como objetivo de facilitação da vida... tanto quanto não se pode tomar como referência um sentimento, particular, como representatito da totalidade de sentimentos do Organismo).

3 comentários:

  1. Estou na biblioteca, compartilho da mesma dor diante do Clodovil, e estou bem próximo da sua experiência com sua tia... meus olhos enxeram-se de lágrimas... Fico pensando o que são muitos de nossos sentimentos e emoções senão percepções de selves, ilusórios ou não, intensos ou não, nobres ou não, eles são parte da experiência do ser humano. Lembro do seu exemplo formativo da cliente-índia, será mesmo que aquela movimentação toda não se deu num campo perceptivo? O self não tem configuração específica, por isso também concordo que ele não possa ser facilitado.

    espero suas respostas... bju

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  2. ... acho que vou levar mais tempo para processar alguma coisa, pq ainda estou "rodando" de estímulos... queria dizer que, se eu demorar para além da conta, por favor escreva cobrando - não é por maldade, por esquecimento, por ausência... é pq parece que se exige um quantum de tempo para mergulhar e conseguir voltar de uma experiência. Enquanto se está dentro dela, da experiência, não existem palavras e cadências, muito menos, texto e coerência. Bjus, obrigado pela sherparia.

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  3. Eu estava sentindo, ainda sinto, essa sensação zonza, desde o texto das mãos, tb bem antes e até bem pouco tempo. Fiquei pensando que pouca coisa da teoria fala ao menos paralelamente do que é uma experiência mesmo de sherparia. Desde a pesquisa, lembro que não há suporte metodológico para fixar a experiência, justamente por ser ela fluxo, daí o professor Cavalcante falar lá no treinamento no sítio da professora Marcília sobre uma "ciência contemplativa". Enfim, melhoras inteiras... com carinho, Helton

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