quarta-feira, 18 de março de 2009

Experiência #010 (Continuação II...)

... Pois é, roda-gigante enorme de sentimentos e enchaquecas. Não estou mal, porém, estou acometido de uma sensação persistente de embriaguez. Não é tontura, não ainda. Não é também por fome. (Deixei de alimentar-me com a lista proibitiva do Otorrino: chá de boldo, chá preto, chá mate, chá verde, Coca, Pepsi, Cerveja Escura, Coisas muito doces ou muito gordurosas... segundo a prescrição, a ingestão desses alimentos seria estimulante para os labirintos). Enquanto diz respeito, somente, ao controle alimentar, acho que é fácil... mas como é mesmo que posso impedir minha cabeça de girar, e girar, e girar? Roda-gigante, sabe!? Cedinho, pela manhã, fui trabalhar, desempenhando funções relativas - e muito caras - daquilo que denominamos Advocacy Experiencial, ou seja, uma Representação Experiencial dos "direitos" e "vivências", do ponto de vista de mundo e de experiência de um cliente. Muito interessante ocupar esse lugar, com o qual, por algumas vezes, ainda durante os estágios, surpreendi-me. Hoje, novamente, não menos instigante. Fui à Escola... calor e chuva, calor e chuva. Volto correndo para casa, venho buscar o Dorje Gonpo, meu cachorrinho tibetano (raça: um Lhasa Apso). Dorje amanheceu, domingo passado, com alguras de uma dor... dor física não identificável, porém, à flor da pele, de modo que não pude abraçá-lo. Fui para a emergência dos cachorrinhos, um lugar agradabilíssimo, com uma médica veterinária incrível: Dra. Gerlene Castelo Branco. O nome do lugar é S.O.S veterinário: SOS de Save Our Souls (Salve Nossas Almas - precisa dizer algo a mais?). SOS era a abreviação que, via de regra, nos telégrafos marinhos, comunicava o desespero de uma tripulação em alto-mar e a tragédia iminente... Fiquei pensando que não está escrito Salve Nossos Corpos, Salve Nossos Sonhos. Afinal, porque a Alma precisaria de socorro? Porque a Alma precisaria da intervenção humana para ser "salva"? O desespero viria a impingi-la com a mácula da descrença, da renúncia à vida eterna? O terror poderia incorrer o bom e justo homem nos cenários da infidelidade ao projeto do absoluto? Salvai-nos, fracos, mansos e humildes, da tentação de manifestar ira e resistência aos desígnos do Deus... é isso!? S.O.S. Não sei. Mas a verdade é que a dor do Dorje era grande, e a minha dor, potencializada pela minha consciência e vontade de tomar controle da situação, era ainda maior. Clínica, médica, injeção, remédio, remédio, silêncio durante o efeito, telefones, latidos. Volta para casa, vigília. Noite, grunidos de impotência na locomoção. Segunda, movimentos contorcidos, dor. Abraços e carinhos suspensos. Remédios, esparmos. Exame de sangue - tudo sob controle. Ainda dor, sob as estrelas. Madrugada, duas, quatro, seis vezes, relâmpagos, pedidos sem palavras: subir na cama, descer por causa do calor, subir durante a chuva, descer para espairecer, subir para aninhar-se, descer para esparramar-se... Terça, remédios. Movimentos limitados. Quarta, nova visita. Radiografia da coluna: érnia de disco em cinco regiões, três compressões lombares, duas compressões cervicais. Cortisona e dois remédios agressivos para conter a dor. 6Kg, 5 anos, menos que três palmos. Subir e descer de escadas suspensos, subir e descer do sofá, da cama. Levantar os potes com ração e água para a altura da boca, reduzir esforços e impactos. "Qualidade de Vida", eu penso. Adrenalina e petróleo gastos. Suor, algumas gotas fartas de estresse, ansiedade, preocupação. Cuidado, cuidado que não é um alerta, que não tem exclamação. É cuidado como transmissão de afeto. Me senti mãe. Lembrei-me, também, da mãe do cliente. Encontrei com minha tia, mãe do meu primo. Mamãe falou comigo... 22h37. Lembrei-me que, em 1989, no lançamento da Internet, eu tinha apenas 7 anos. Ganhei meu primeiro, e mais especial computador aos 10 anos - em 1992. Faziam apenas 3 anos pós lançamento da NET. Eu faço parte dessa geração. Foi um presente do meu avô-Feitosa. Eu escolhi a configuração mais avançada para época, foi encomendada de São Paulo (um Pentium 100MHz). Veio já com impressora e scanner. Naquela época, nossa casa estava em reforma, de maneira que, ocasionalmente, estávamos de aluguel, em um condomínio de apartamentos, simpático, ao lado da Embratel, na Pontes Vieira. Haviam três quartos, e eu me recordo que estava instalado, sozinho, no último quarto, final do corredor: eu, o computador (que ninguém entendia como funcionava!) e um banheiro cujo chuveiro estava quebrado. Rapidamente, conseguimos internet pelo telefone. E assim eu cresci. Virtualmente livre, fisicamente limitado. Foi a internet que me apresentou ao mundo e à cultura. Viva meu avô - que não entendia o computador e sua realidade, mas acreditou que me seria algo útil. Meu avô viveu e morreu ao lado de uma máquina (de escrever) Olivetti. Habitualmente instalada no escritório dele, mas que também viajava ao interior na sela do seu transporte, viajava aos seus outros mundos do passado, das estórias e da imaginação.Não haveria um Blog com máquina de escrever. (Como a vida mudou, desde então.) Eu gosto muito, muito da experiência compartilhada do Blog. (Mas acho que preferiria menos... menos, inclusive, do que a máquina de escrever.) Em que minhas letras aplacam a dor de érnia de disco, em cinco pontos de tensão, no meu fiel cachorro? Em que meus parágrafos e delírios fazem dele, ou da vida dele, ou, mesmo, da minha relação com ele, algo melhor, mais saudável? Acho que fiquei com inveja da habilidade, por exemplo, da veterinária de prescrever uma interdição imediata (que não exige mediação nenhuma subjetiva), ou, ainda melhor, a capacidade dela de aplicar acuputura no cachorro e, rapidamente, com vinte-trinta agulhas, meu amigo-cachorro relaxar, abaixar a cabeça e descansar um pouco. Que bom, que graça. (Graça, não como engraçado, mas como algo sublime!) Agora, ele dorme, sob os meus olhos atentos. Provavelmente, a doutora, na clínica veterinária, estará a madrugada inteira de plantão - e amanhã novamente, e depois novamente. (Ela me dizia que já tem horas para se aposentar.) O Dorje vai se aposentar!? Minha tia, como de costume nas cirurgias, demora para retornar à zona de consciência - foi assim na cesariana de 1988, foi assim, também, antes de ontem, na tireóide. Hipersensibilidade às tentativas agressivas da química para estancar a consciência. É uma violência tão grande, tão grande, que se o indivíduo não morrer do anestésico, "deu tudo certo". Violência tão grande quanto o bombardeio químico da radioterapia - se o organismo não morrer, "deu tudo certo". Violência, imensa, da hemodiálise - recordo-me das lágrimas, da dor física, das perdas psíquicas, da morte real, das vertigens, do cansaço, das renúncias, da falta de água, da sede, da vontade de beber. A medicina salva - gente, cachorros, esperanças. A medicina mata - gente, cachorros, esperanças. A titia acha que valeu a pena a cesárea dela, em 1988 e em 1989? Não estou falando dos meus primos, estou perguntando dela, dos sentidos dela, dos esforços depreendidos por ela? Hoje, a noitinha, quando devolvi o carro dela emprestado, ela estava sentada, meio feia, meio bonita, com um pijama de bolinhas insinuando que se levantara diretamente do leito acamada... estava lá, o melhor e mais radiante que seu organismo lhe permitiria estar. Aliás, já recuperando o senso de obrigação, comando, diligência, força. Um terço da tireóide dela, uma glândula hormonal, seccionada. Eu acho tão, tão, tão maluco, alguém, nesse planeta, se permitir intervir, jogar fora, uma glândula, um pedaço do corpo. Não porque o corpo seja sagrado. Mas de quem é mesmo a mão que tira? E a mão de quem colocou - como fica!? Como fica o indivíduo concreto, além das nossas certezas de tirar e colocar algo? Ainda estou completamente congelado com o olhar da psicóloga, da escola. Eu nunca vi um olhar tão bonito, tão profissional, tão inteiro. Gente, era um olhar de compaixão, emprestado ao corpo de uma profissional de uma instituição educacional. Ela me dizia que estava preocupava, mesmo, com o cliente que assisto. Que olhar e postura incrível: séria e comprometida. Quer dizer que o olhar dela é superável de todas as dificuldades? Acho que não, e acho que ela própria também enxerga que não. Há limites. Muitos, muitos. Lidemos, pois, com a vida e suas contigências. Fico pensando se há dignidade possível nas vidas e suas contingências, se é possível vivencia-las de uma maneira nobre, bonita, significativa? Hoje, por exemplo, enquanto Dorje era, literalmente, manipulado para a radiografia da coluna dele (não era na clínica SOS! não era com a médica que falava, anteriormente!), eu, por trás de uma porta de chumbo, via, apenas, um "animal", preso em suas duas patas, como um boi que pode ser facilmente esquartejado... pela luz, pela luz violenta, radiativa, da "chapa". Três dosagens de luz química, três chapas, três recortes da coluna e seus detalhes vertebrais. Depois do Dorje, trouxeram uma onça, agarrada por três homens fortes. Igualmente, um pedaço de carne com o qual se faz uma intervenção. Intervenção cuidadosa, atenta, respeitosa, mas, ainda assim, intervenção na carne. E ponto. Não há símbolo, não há subjetividade, não há pano de fundo. Imagino que deva ter sido alguma coisa semelhante com a minha tia, certo? Um pedaço de carne branca. Eu me sinto meio que violentado por essa concepção pré-histórica. (Eu queria saber se a intervenção não poderia ser feita ao nível da noosfera, e não, necessariamente, da biosfera?) Não sei, exatamente, qual a base e fundamento filosófico dessa intervenção na carne, porém, certamente, não é Pragmatista. Alí, na manipulação dos corpos, suas partes e sintomas, não há intervenção na experiência. É pura direção e objetivo. A experiência, quanto muito, é considerada tangencialmente. (Por exemplo, durante a radiografia e minha explícita indignação, me perguntaram o significado tibetano para o nome do Dorje... eu gostaria de ter sido capaz de retribuir a futilidade protocolar da gentileza e do interesse superficial pela minha pessoa com uma menção de protesto...) Se a experiência que alcança o Organismo do cliente, da minha tia e do Dorje não cabem na mesa de análises, lamento, não é experiencialmente Pragmatista. Eu não sei, e talvez Hélton possa me dizer, o que acontece com o Self quando se injeta anestésico cirúrgico... eu sei que, no que tange a dimensão experiencial, os processos de significação da vida jamais cessaram. Em última análise, não há Organismo, há, apenas, carnes e um emaranhado de discursos e poder. Triste, não? Vou tomar chá para ungir o meu juízo. Fiquei muito feliz com a notícia que o testamento do Clodovil prevê a criação de uma instituição para órfãs. (O Clodovil dizia que nós apenas nascemos, e jamais morreremos...) Fiquei feliz também porque os índios regressaram à corte do STF para lutar por Raposo Tavares. Pensei que, talvez, com a Olivetti do meu avô, eu pudesse escrever uma história sem dor para o Dorje. Não vai mudar nada - nem o Dorje, nem o meu Pragmatismo. Porém, o simples fato de minha Organicidade convergir esforços e energia para isso, algo nessa ressoa com tudo ademais, e o próprio Dorje é afetado. Nesse sentido, amar é também sonhar, e sonhar é também realizar. Em algum sentido, sim.

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