sábado, 5 de novembro de 2011

Caixa dentro de caixa dentro de caixa...

PAUSAS E TREMORES

Guardamos o afeto pelas coisas. Estrelas opacas, ou rosas de cintilar minguante... apenas desaparecem. Pastas, sacolas, caixotes, listas, pessoas... um olhar para trás que não pode ver além do hoje? Adormecê-las em nossa paisagem, ode e súplica. Guardamos o afeto que vivemos com algumas pessoas. Mas não conseguimos, embora insistamos. Tentamos guardar o que em nós foi bom ou talvez bonito. Mas não conseguimos, embora, eventualmente, mingüemos no esforço. Onde estávamos com os nossos pertences, resta a poeira do que seguiu e não deixou bilhetes, nem chocolates. O que em nós delimita-se, quando esse alguém já foi embora? O cheiro, diríamos. Nós o esquecemos. O gosto, tanto e tanto queríamos. Nós também o perdemos. A imagem, pensaríamos atravessá-la, incessantemente conosco. Nós a descaracterizamos: invariavelmente deformada. Não somos bons em matéria de arquivamento. Há sobras, resíduos, aparências. Há papéis, de tudo que manipulamos com letrinhas avulsas da sopa fria. Há bandejas, invólucros, relicários para os nossos odores. Debaixo das caixas, há marcas do tempo e suas finas silhuetas. Nas camisas dobradas, pequenos delitos e manchas. Nas tampas dos perfumes, apenas o imaginário suavizado. Nas cruzetas, estamos suspensos pelo equilíbrio. Retemos nossas tentativas de provas, martírios, evidências. É lá, que buscamos esclarecimentos, satisfações, vestígios. Perdendo, a conta gota: delírios umidificados no beijo, na ladeira da curva da aliança, nos pavores e vapores, nas intensidades e nas ansiedades, no suor, na saliva, na secreção, no sangue, no sêmen, nas lágrimas. Dentro das gaiolas com tubos vazios de pasta de dente, dentro dos cheiros calcificados entre a lapela do alpiste e a louça do banheiro em mármore, lá nós investigamos as sobras, os excrementos, os furos, as traças... as nuvens passam, e tudo que não precisa ser reciclado causa-me dengo-dengue: geometricamente macio, viscoso e aveludado nas cores. Minha religião é a descrença. Vomitar, até sentir dor, e expelir o último molho de chaves. Na ocupação regurgitada do espaço, me confirmo um mero transeunte: sem luzes, maquiagem, microfone, roteiro; não há escombros. Procuro respostas, nas frechas, nas passagens, nas colagens que unem partes simétricas dos objetos. É uma cena aterrorizante, nu perante a coleção de desconhecimentos que flutuam no jardim dos abismos que naveguei. Não afunda, e não me faz boiar – não tenho relações, estão perdidos desde sempre... e porque não foram embora, de mãos dadas com o tempo encardido das coisas? Quando a poética do gesto suplanta-se nas unhas e nos cabelos mortos, então, a alma já não quis o corpo arqueado e dolorido – e fez-se, apenas, carne e pregos.

SOBRE UM ESPETÁCULO DE DANÇA...
Anatomia das Coisas Encalhadas - Direção e interpretação de Silvia Moura
Do Grupo CEM – Centro de Experimentações em Movimentos
5 de novembro de 2011, na Bienal de Dança do Ceará

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