sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Águas em Dança














* Foto Marina Cavalcante - Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura


Afeto, afago, afogo


Das montanhas, era uma vez a água. Imagine um corpo de água. Dentro do corpo, circula a água doce das montanhas verdes e dos céus azuis. No corpo herdeiro daquele azul, imagine contos que amadurecem frutíferos, como ilhéus de sentidos. Chuviscos desses contos precipitam-se, com a estação dos abandonos que se repetem. Em cada conto inconsiderado, imagine uma malha de afetos na forma de dunas – muitas formas naquelas muitas ondulações. No cheio das luas, e das marés, também se movem as dunas, comunicando entre si diferentes contos que vieram de longe. Cuidado para não se afogar: considere que esse afetos-dunas são ventanias que imprimem movimentos às águas: por acúmulos sucessivos, oferecem ilusões de profundidades a isso que, de outro modo cru, seria apenas abismos e não circunstanciais depósitos de areia e certeza. Portanto, aqueles ilhéus de contos não são os territórios que nos situam-flutuam-sitiam em meio a tanta água – ao contrário, os ilhéus lançam-se em declive profundo, ao mais inalcançavelmente sem fim. Seu fluir de eterno afetos possibilita-nos sulcos de passagens na cena-miragem desse contínuo de movimento que ocasionalmente se deixa fisgar como paisagem-memória. Imagine que esses corpos de água, condensados de um processo que não cessa de recontar-se, já transpiram na exigência do viver. Perdem água e mais água, também por obrigação e por colaterização. Imagine que para um corpo tão somente de água, perder-se, ademais, em lágrimas, mais do que dor imediata, é perder camadas da própria pele, do próprio funcionamento, da sua proteção e mediação com outros aqüíferos. Imagine que nenhuma gota dessa água é perdida. Imagine que as três cegas ninfas, desconhecendo de onde provêm rios e afluentes dessas águas lacrimosas, guardam-nas em pequenos sacos de plástico transparentes, e fitam com o encarnado do mágico e do delicado. Surgem depósitos daquela água-redemoinho vertida pelos corpos de água, abrigados em sacolas e sacolas, que forjam dunas de sacolas de lágrimas. Há também caixotes. Cada vez que se perde, quer-se ter de volta o que partiu: aqueles volumes de si. Caixotes, mudanças. Acho que o nome é saudade da água que se foi. Caixotes, mudanças, fotografias. Mas não é saudade – ou nem sempre. Fita nos olhos: é para não gritar. Às vezes, é apenas o transbordar desses afetos, dessas águas que se avolumam sem v/razão, águas barradas. E que explodem, sem contenção... pelos olhos, sobretudo, e nos poros, apenas água. As ninfas, apenas a-guardam. De tanto ouvir as súplicas dos corpos que se esvaem, as duas criaturas lentas do tempo, do tempo da fecundidade e do tempo da amargura, permitem que as velhas restituam os córregos daquela água perdida. Criaturas pétreas rolam, e também como no Sertão, vê-se o jorrar abundante de pregos e soluços correlatos... Ter de volta o que de mim partiu, seria um alento, seria uma esperança – jamais seria motivo de convulsão... exceto, apenas somente, se meu corpo de água pudesse lembrar que, a cada gota que se vai, mais e mais ferido eu me torno, mais e mais exposto, mais e mais avesso à água que um dia fui... quando as tais ninfas obscuras apenas devolvem a água salgada das minhas tantas lágrimas, tantos sais e tanta água, de cada uma daquelas lágrimas, de toda a vida desse corpo molhado, então, o sal queima, contrai, extirpa, incendeia aquela morada, meu corpo, outrora sua fonte e origem. Ninguém imaginaria que as lágrimas minhas que retornam tra(i)riam a memória molhada do corpo ferido, corpo ora incapaz de abrigar o que já não é mais seu – a menos que submetido pela violência da contorção, do debater-se, do evadir-se da sua própria dor e desespero. O corpo rasga-se das escassas e tão finas camadas de memórias ferozes, urge, grita, salpisca... Essa água que volta não me cura, porquanto lágrima nenhuma abriga as nuvens para a minha doce sede. Semelhanças entre água e emoções são meras coincidências? Na solidão extensa, a violência que me seqüestra toda a água, e que por isso me torna menor, não será a mesma que irá me fazer maior – retornando, essa água que, míngua e salina, apenas evapora com toda a cena. Resta o começo: deixai a água partir! Toda, do passado e do futuro.

SOBRE UM ESPETÁCULO DE DANÇA...
Espetáculo “Ind gente – Uma dança para a solidão” (direção de Silvia Moura)
Do Grupo CEM – Centro de Experimentações em Movimentos
Dias 03, 10, 17 e 24 de Novembro, às 20h, no Teatro Dragão do Mar/Programa "Quinta com Dança"
http://www.facebook.com/event.php?eid=257072421007524

RECOMENDO FORTEMENTE...

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