quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Experiência #002

(terceiro dia, e a labirintite ainda me aborrece!) A sala de aula, a sala de uma empresa, a sala da psicoterapia... é possível facilitarmos relações organísmicas? A pergunta soa como boba, ou, quem sabe, fácil demais, explícita demais: "é claro que sim". Ok!? Se estivermos certos, vamos tomar, por exemplo, uma sala que tenha objetivos de aprendizagem claramente delineados - digamos, uma sala de aula de Química Orgânica. Poderia, eventualmente, ser uma sala de trabalho, da área Industrial, de uma empresa. É possível, também, imaginarmos uma sala de atendimento de grupo, que recebe clientes encaminhados ao serviço de psicologia. Nas três situações, grupos, por exemplo, com 27-32 pessoas. Podemos imaginar, clientes que não se conheciam previamente, estudantes que chegam, no primeiro dia, à sala de aula de educação de adultos, funcionários recém admitidos para uma nova fábrica, no processo de expansão de um grupo empresarial. Três settings, as mesmas 32 pessoas, que não guardam qualquer relação de parentesco ou intimidade entre si. Idades, formações técnicas, experiências diferentes. São pessoas que estão, alí, compartilhando um mesmo espaço, mas que desempenham papéis diferentes, certo? Digamos que, na sala de aula, tenhamos, em um dado momento, no mesmo espaço, o coordenador, professor, assistente de aula, o líder de sala, o pessoal do fundão, os estudantes mais aplicados, pessoas com deficiências de aprendizagem, além de alguns outros que fazem parte daquela sala mas que faltaram nesse dia. Seus lugares estão vazios, mas é uma lacuna ocupada (para eles próprios, os ditos ausentes, para outros). Na empresa, teríamos diretor, gerente, coordenador, analistas, técnicos, estagiários, terceirizados, fornecedores, acionistas, presidente. Naturezas de interações diferentes que se sucedem concomitantemente. Na sala de psicoterapia, repassaram-nos os prontuários de donas de casa, motoristas acidentados, empresárias de pequenos negócios, jovens drogaditos, seguranças privados, universitários, desempregados. É verdade: em comum, todos são pessoas. Todos deveriam ser encarados como pessoas. Ponto final. Basta encara-los e reconhece-los como pessoas. Esse é o estatuto de dignidade máxima e primeira na ética da Abordagem Centrada na Pessoa. E por isso mesmo, em nome dessa escuta atenta que vai em busca das necessidades e singularidades do outro, descobrimos suas dificuldades e desafios particulares. Observamos que as pessoas, todas elas, são diferentes, e que das mesmas 32, em um contexto, apresenta-se uma faceta da "dona de casa", que em outro contexto, torna-se a imagem da "estudante na sala de adulto", ou, ainda, que pode exercer o lugar de "funcionária". São partes diferentes, de uma mesma dignididade pessoal, que não, necessariamente, comparecem aos três contextos. E os três contextos, por sua vez, com objetivos específicos: sala de aula, sala do trabalho, sala da psicoterapia. Respeitar a pessoa significa descartar o mundo, as demandas e as exigências onde tais pessoas estão inseridas? Fazer de conta que elas não precisam lidar com a "Química Orgânica", fazer de conta que não precisam "Alcançar as Metas de Produção", fazer de conta que não buscam cessar o sofrimento que acomete suas famílias, suas vidas? Centrar-se na Pessoa é conceber uma imagem ideal daquilo que se deve considerar e escutar - e que não compartilhar, necessariamente, do mundo concreto? Centrar-se nas pessoas reais, dos mundos reais, não é facilitar-lhes possibilidades de enfrentamento, ressignificação e transformação para suas eventuais demandas e necessidades experienciadas? Isso, apenas, para falar das pessoas, individuais. (...) Pausa. Na Abordagem Centrada na Pessoa, estamos interessados em facilitar fluxos organísmicos, mediar conexão e diferenciação entre porções da vida. Isso pode acontecer entre o Organismo de um indivíduo, particular, e suas diversas relações, contextos... porém, via de regra, deparamo-nos com o Organismo de um grupo (pode ser um casal, e suas relações comuns; uma família... uma sala de aula... um departamento de empresa... um grupo de psicoterapia... um quarteirão, com seus conflitos raciais, estigmas, violência social... Os grupos podem permanecer "grupos". Outra coisa, é facilita-los, a todos, como uma relação de pertencimento e compartilhamento próprio, um Organismo que, eventualmente, é capaz de expressar qualidades e características próprias, assumir direções próprias, construir alternativas próprias. E que ele próprio, o Organismo, sabe das suas melhores estratégias de manutenção, regulação, atualização e mudança. Vamos, então, construir um ponto comum, com o qual faremos todas as demais inferências. Seríamos capazes de suportar, em nossa experiência real - e não apenas como uma crença, fantasia ou moral cognitiva -, um lugar que enxerga e valida, em nós mesmos e nos outros, que a vida e os Organismos, as diferentes formas e agrupamentos da vida, podem auto-dirigir-se? Seríamos capazes de apostar que a vida é capaz de dirigir-se e expandir-se, a partir da sua diversidade e impresibilidade intrínseca? Existe espaço para que a precipitação, a ansiedade e imtempestividade dos nossos medos e inseguranças possam respirar e dialogar com os movimentos da vida, sem imprimir, impor, exigir tanto controle? Se... e somente "SE"... formos capazes de sustentar essa experiência de intimiade e ressonância vital, melhor dizendo, essa abertura e compromisso interrelacional entre, de um lado, uma dimensão da vida e dos fluxos do universo de cuja a organização expressa-se em mim, e, do outro lado, arranjos e expressões outras da vida que intumescem em suas geografias siderais... Se... e somente "SE"... existir, pelo menos, no meu campo experiencial, uma disponibilidade para adentrar nesse fluxo de crescimentos, de movimentos e de impermanência da vida, fluxo mesmo onde surge e cessa e surge outra diversidade... Então... e somente "ENTÃO"... podemos dar a partida nessa viagem: rumo à facilitação de arranjos formativos, ou disposições de fluxos que possibilitem trocas mais significativas entre as diferentes porções da vida, em vistas de vir a reconhecer, na diversidade, a possibilidade de encontros e ressonâncias, em vistas de construir organicidades em funcionamento mais pleno dos seus potenciais e expressões, em vistas de mediar interdependências e intercomplementaridades, em vistas de permitir transformações nos padrões e fronteiras de contato, na configuração-mesma da vida. O nome disso é Tendência Formativa. Por enquanto, "basta" saber que existem canais e córregos experienciais por todos os lugares, e que a vivência de um impacta o outro, que, por sua vez, alcança um terceiro, e que, por conseguinte, influencia um quarto... que é possível ouvir e reconhecer essa rede de interações. Não apenas ouvi-la, mas deslocar-se para o seu fluxo, nela movimentar-se. Eventualmente, facilitar sua expansão, tornar-se co-partícipe de seu crescimento: tornar-se um Sherpa... Crescer de mais vida! (Certamente, isso não é o que temos chamado Ecologia).

2 comentários:

  1. Muito bom, como sempre, te ler André. Por falar nisso, me refiro aqui, literalmente, ao ler. Outro dia desses numa aula de fenomenologia ouvi algo do tipo vindo de um professor: nós terapeutas devemos ler o cliente. Isso me incomodou profundamente, e de um tempo pra cá, desde a formação em ACP, muita coisa tem se contorcido e ruido muito nos meu ouvidos antes de ser realmente escutado. É como se você, ao adentrar dentro desse fluxo de vitalidades e expressões de vida (formatividade), você selecionasse naturalmente, organismicamente, em sua escuta, padrões perceptivos de desalinhamentos humano. Exemplo típico para mim, e que diz respeito ao meu contexto, essa frase corriqueira num curso de psicologia que coloca o terapeuta numa posição privilegiada de escutador, um escutador que capta o que o cliente não percebe, que alcança profundezas que o cliente não se deu conta, enfim, um profissional que vai alcançar o cliente naquilo que ele ainda não consegue, um profissional que aprendeu a ler o outro. Isso me incomoda profundamente. Se como princípio ético a ACP traz o humano enquanto organismo em formação rumo a maior complexidade, olhar o humano não colado ao nivel auto-regulatório da cultura, é um primeiro plano dimensional que formativamente um Sherpa poderia entrar em contato com seu cliente. O humano enquanto expressão plena da vida, porção inteira e irrepetida da vida, independente das correntezas e poluições que atravessem seu fluxo (não colar nisso não quer dizer não procurar formas de integra-las a experiência). Então estamos falando de uma abordagem do humano extremamente revolucionária mesmo, porque Carl Rogers não se fixou no campo do psicopatológico, não ancorou a expressão de seus clientes ao campo de mera expressão cultural, e, o que considero mais silenciosamente revolucionário em tudo isso, essa disponibilidade diante do outro é efeito de um modo de percepção e atenção extremamente sofisticado mesmo em sua simplicidade (por mais diferentes que sejam as psicoterapias, não conheço nenhuma a não ser a ACP que não represente o cliente a partir de sua psicopatologia, não o acompanhe a partir do campo do cultural e que disponha de um material psicoterapêutico estudado cientificamente). Sofisticação, aqui, em termos de experiência (não colorários) e simplicidade no que diz respeito a clareza, pelo menos cognitiva, de quais arestas são convocadas pelo terapeuta na relação a partir das atitudes. E o que disso decorre é um movimento altamente complexo de se dispor diante do outro, e é onde o bicho pega pra mim, ocidental, estudante de psicologia, racionalista; o funcionamento organismico do terapeuta centrado na pessoa, uma vez que este traga para a sua experiência a possibilidade de expressões formativas, requer quase que absurdamente uma presença humana em que a epistemologia científica, dentro do campo do psicológico, ainda sequer consegue vislumbrar enquanto prática psicoterapêutica. O que falo aqui pode chocar, há alguns ouvidos desalinhados com a Vida, um terapeuta centrado na pessoa que se dispõe formativamente ao outro se depara com expressões de consciência muito aquém do padrão perceptivo que foi desenvolvido pelo ocidente e sua filosofia. Intuição, estado alterado, escuta plena, contato, momentos mágicos... Estas palvrinhas são caras experiencialmente há muitos terapeutas que conheço e nem mesmo eles, e eu, conseguimos nos localizar pontualmente dentro de uma experiência terapêutica em que ressoem tais "fenômenos". Um princípio muito alto está em jogo nos atendimentos, nas facilitações, a abertura a partir de uma aposta e um risco em uma Tendência que só permite-me referir-se a ela enqaunto tal a partir destas palavras (aposta e risco) por sua própria qualidade inerente, qual seja, a de que somos partes expressivas de sua presença, e portanto, não dirigimos ou controlamos este processo. Passados alguns conflitos que esta abertura me exigiu, no início de minha formação, reconheço que o risco e a aposta cada vez mais se transformam em confiança e abertura, um amor muito particular pelo ser humano. Muito grato pelo seu texo, vamos continuar trocando... Um abraço grande, Helton

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  2. Grato por suas palavras e generosidade na partilha de sentimentos e percepções. Vamos pensar e escrever mais a respeito dessa questão do "Funcionamento Organísmico do Terapeuta" - boa e necessária lembrança. Abraços.

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