sábado, 28 de fevereiro de 2009

Experiência #004

(Não sei se vocês já assistiram "O Leitor", está em cartaz... nas cenas do final, existe um diálogo, muito interessante, entre o protagonista e uma senhora judia, onde ela rememora suas “batalhas” pela sobrevivência nos Campos de Extermínio, e declara, mais com seus olhos do que através das poucas falas, todas as dificuldades intrínsecas àquele passado... O fato, apenas, de ter sobrevivido - no seu caso - à morte incendiária em uma igreja, e, posteriormente, ao trauma psíquico... para mim, já é muito, já é digno do meu respeito... mas perguntaram, a ela, e escutamos, no filme, tal questão trazida no lastro das suas lembranças... perguntaram o que ela "aprendeu" nos Campos de Extermínio, e eu, expectador, "aprendi" a melhor de todas as respostas: Campos de Extermínio não eram escolas onde aprendíamos, Campos de Extermínio não tinham professores e não nos ensinavam novos conteúdos, nos Campos de Extermínio, nós não éramos estudantes... Em Campos de Extermínio, haviam técnicos e oficiais Nazistas, focados na humilhação, na dor, na morte e no extermínio. Não, eu não aprendi nada nos Campos de Extermínio. Eu tentei sobreviver. Essa experiência de "sobrevivência" pode ressoar, eventualmente, em formas de aprendizados - ou não. O fato de não haver aprendizados necessariamente decorrentes, não exclui a experiência marcada, seja a de experiência resiliente, seja a de experiência de colapso. A experiência não é refém dos seus correlatos posteriores (sentimentos, aprendizados etc), assim como o Organismo não é refém de significados e propósitos humanos (a vida não diferencia-se preocupada em responder necessidades privadas da espécie humana ou desejos íntimos de um grupo específico). Quando se fala, no campo da Psicologia, de Tendência Formativa e de Organicidade, está se apontando essa dimensão dos fluxos e processos experienciais, que possibilitam crescimento, expansão, ressonâncias, novos arranjos e complementaridades entre porções da vida. Estamos, portanto, falando de experiência).

(...)

Não sei, exatamente, porque estou tratando, disso, agora... pensei em começar o blog, de sábado, pela manhã, resgatando a experiência da palestra, de ontem (que se transcorreu em uma sala bonita, com nome de um judeu... haviam rostos judeus, na platéia, Hitzschky, Nóbrega, por exemplo)... e, de alguma maneira, me ocorreu essa imagem do filme, como um registro experiencial que está associado, de alguma maneira, à experiência vivida e narrada, por mim, na noite de ontem. “Em Campos de Extermínio não se aprende nada”. Não se quer dizer, com isso, que o fato de não serem instituições educacionais (e, sim, instituições da barbárie), o grau de resiliência do organismo esteja colocado à margem. Nem está à margem, quiçá esteja em relação direta de facilitação, como algo sendo trabalhado/desenvolvido ou provocado pela barbárie (talvez, evocado – às vezes, nem isso). Como se a experiência de resiliência fosse apenas um aprendizado, um aprendizado das estruturas humanas. Como se a experiência fosse, apenas, um construto pré-fabricado, pré-aquecido, pré-moldado, uma especialidade da cognição humana. A experiência não é. E, não necessariamente, experiência de resiliência está associada às faculdades cognitivas. A barbárie produziu terror, medo e dor. Traumas insuperáveis. (Insuperáveis, mesmo!) Ainda que nesse estatuto de algo dolorosamente “insuperável”, não sejamos capazes de implodir ou cessar as tentativas do organismo para manutenção da vida. Quem foi que disse que podemos tudo!? Que seríamos criaturas tão fantásticas a ponto de “extinguir” a barbárie, o mal, a destruição, a morte do Universo? Uma coisa é constatar que temos meios para lidar criativamente com os desafios da vida, outra coisa é dizer que podemos tudo, porquanto seríamos a métrica e o fundamento do Universo. Traumas insuperáveis e os esforços da vida para crescer podem, sim, representar campos paralelos, forças em mútua relação e não excludentes entre si. É importante compreender isso, para não cair na concepção equivocada de que resiliência (individual ou comunitária) é, tão somente, uma resultante de vetores que foram capazes de excluir a dor e a miséria, o trágico.

Os Traumas, insuperáveis ou contornáveis, em nossa Teoria, são feridas organísmicas. E o seu estatuto correspondente, como superável ou insuperável, é, simplesmente, um dos pontos na miríade de fatores que concorrem e atravessam o Organismo. A vida não pára, não cessa, mesmo pelo trauma e pela dor. A vida, não necessariamente, descarta o trauma e a dor. Existe lugar para a dor e o trauma no Organismo. E a dor e o trauma podem, inclusive, numa atitude de coragem (de amor existencial – já leram “Cartas a D.”, de André Gorz?), serem integradas e disponibilizadas como um recurso de mobilidade organísmica: se a dor e a ferida, a sutura ou a ruptura, não estiverem sob a custódia (moral) da "interdição" e do "absurdo", ela e a natureza-mesma do vivido podem instrumentalizar um nível de mobilidade e de caminhar, de respeito e de não-ansiedade, de não-temerosidade, de responsabilidade, de cuidado e de inteireza ante o sofrimento absurdo de um outro. Sofrimento absurdo, ou não completamente apreensível pela minha cognição. Mas a Organicidade também não é absurda, ou os nossos modelos matemáticos (e de engenharia de software) já são capazes de equacionar todos os processos que envolvem o Organismo? Parece que estou, apenas, apenas e displicentemente... como quem não sabe o que fala, como quem não sabe para onde vai, como quem não tem direção coesa... parece que é, apenas, acerca do sofrimento que se fala. Não: eu (ainda) estou no organismo. Três pontos que não podem ser desconsiderados na facilitação do Organismo e de Organicidade:

  • O absurdo da dor, do sofrimento e do trauma, em vistas de facilitação de crescimento Organísmico, não pode ser negligenciados pelos terapeutas como partículas mórbidas. Lembrem-se que, nesta compreensão Organísmica, a relação de ajuda e a intervenção terapêutica não são configurações de um setting específico, mas, antes, são posturas e atitudes de quem as sustenta nas relações com as quais depara-se (Organismo e Organicidade não são realidades autônomas que existem, no mundo, alheios à experiência concreta). Não existe como nutrir e facilitar um dado funcionamento organísmico (individual ou grupal), se estivermos com medo e com receios de abordar e integrar as rupturas e os traumas, os sofrimentos, os medos e as inseguranças. Aliás, penso que a única distinção entre o nosso trabalho organísmico e o eventual trabalho de construção sistêmica de um Organismo, por uma equipe composta de um (exímio!) Engenheiro, um (exímio!) Analista de Sistemas e um (exímio!) Gestor, é o fato que, em nosso modo de facilitar Organicidade, além de também realizarmos um Inventário de Processos, de Inputs, de Outputs, de Relações (endógenas/exógenas) do Organismo, nós não DESCARTAMOS as rupturas, e não pretendemos, necessariamente, obrigar que uma "ruptura" torne-se uma "ponte". Existem rupturas que, dadas suas configurações e relações em um dado organismo e sua história, não estão disponíveis para serem tocadas, quer mesmo superadas... existem rupturas que não serão superadas, tamanha é a intensidade e o volume da dor... e, nem por isso, as rupturas, os fragmentos, as parcelas dissociadas, aquilo que não se encaixa, que não se deixa administrar, que não se alinha corretamente às expectativas, aquilo que trava, que causa fissuras, erros e desacordos, "isso" (que é) "Experiência"... por não ser passível de administração, não quer implicar que seja descartável, desconsiderável ou intangível. Em alemão, experiência, "die Erfahrung", é um substantivo feminino (como em Português, “a” experiência). Porém, "o Inconsciente", que, em Português, é um substantivo masculino, em alemão, é neutro, é "das Unbewusste”. De um prisma técnico, quando falamos de experiência, não nos referimos seja "o" experiência, ou "a" experiência; experiência não é uma idéia que se antecede por uma referência precisa (um artigo) do tipo masculino ("o", em alemão "der") ou do tipo feminino ("a", em alemão "die"), não é algo definido como uma coisa (em inglês, "it", utilizado nas referências às coisas e animais), tanto menos seja algo intratável ou "indefinido" (em alemão, masculino "ein", feminino "eine")... experiência, Erfahrung, do ponto de vista conceitual, concomitantemente é definido e é neutro: nem aqui, nem acolá, nem alhures, apenas aberto, expansivo... na maneira como entendo experiência, trato (com as devidas licenças poéticas e argumentos técnicos, apesar da intencionalidade no malogro gramatical) por "das Erfahrung" que, em Português, seria qualquer coisa como "isso Experiência". Não é, apenas, linguagem: é uma tentativa de lidar com "isso experiência" através de uma nova metáfora, sem a expectativa que ela seja algo encaixável, algo compatível, algo deglutível - porquanto, muitas vezes, não é, e, talvez, não será. A experiência pode ser um impasse, algo que não será relacionável, e, nem por isso, deixou de ser uma experiência disponível de barreira, tranqueira, sem-saída. Acreditar que a experiência será, necessariamente, algo que se "prepara" e se "apresenta", depois de uma maquilagem nas penteadeiras morais, é acreditar que só podemos aceitar e incluir, legitimar, incorporar, trabalhar e construir Organicidades de experiências bonitas, elegantes, interessantes, cordiais, gentis, pré-aprovadas em nossos sistemas de varredura. E não é: a experiência, por ter sido experienciada e vivenciada, não se organiza em um rol de conteúdos moralmente louváveis. A experiência não é a best-friend da moral e dos bons costumes, tão menos das Condições de Valia internalizadas e dos Ideais de Eu almejados. Se formos capazes de tratar "isso Experiência" como algo que não teremos que "formatar" e "manipular", então, temos a matéria prima para fluxos organísmicos... veja: fluxos, relações, dinâmicas, aprendizados, movimentos entre os vários componentes do organismo, e não entre, apenas, aqueles que eu julgo que sejam razoáveis para compor uma Imagem/Ideal específico de Organismo que busco desenhar. (Nada contra os Ideais, apenas, eles produzem rupturas, instituem crivos e parâmetros rígidos/morais para eleger o quê entra, o quê fica de fora, e não estão interessados em escutar as necessidades concretas da vida, e não permitem movimentos).

  • O outro lado, do mesmo diapasão... é preciso ter cautela, atenção e presença no trato com as questões do Poder. Essa nomenclatura de Poder é, provavelmente, tão ampla quanto as definições possíveis para Experiência... campo IMENSO de complicadores! Vou tentar ser o mais claro possível, no que diz respeito ao recorte do Poder e da Experiência. Ressalva de número zero: não estou falando da capacidade humana de influenciar e gerar marcas, promover mudanças em si mesmo e nos outros. Estou buscando tratar do Poder enquanto uma dimensão de sociabilidades, um modo de partilharmos e vincularmo-nos, uns aos outros, um modo de construir possibilidades de encontro e de crescimento. Existem vários mecanismos de Poder que facilitam ou obstam esses encontros. Nisso, está incluso, sim, o fato de que, no mundo simbólico dos humanos, sempre lidamos com algum nível de exercício de poder (pessoal, formal etc)... Porém, dessas expressões de Poder, que irão mediar o trato e o manejo com os nossos símbolos (cultural e socialmente) criados, quais formas de concepção e condução simbólica, das nossas relações e do trato com a vida e o mundo, são capazes de incluir, em suas variáveis, formas de respeito à singularidade, radicalidade e especificidade de cada Organismo, como uma realidade própria e dinâmica? Haveríamos, talvez, de reconhecer um contra-senso: os símbolos, como parte da cultura (com seus valores), não foram criados, justamente, para construir um parâmetro comum e geral, ainda que simplificado, de interações e horizontes? Não foram criados para, dentro da diversidade, estabelecer padrões e referências de comunicação, interação, decisão, alcance, apreensão dos fenômenos? Resgatar a experiência e o singular não significa, ao contrário, reinscrever um olhar para o sempre-novo e o sempre-singular e o sempre-imprevisível? Não significa despadronizar, abrir mão de uma parte do controle e da autoridade, reconhecendo e devolvendo a capacidade do próprio organismo de autoregular-se? Ora, diria algum, com a brevidade de quem aguarda a chegada do antepasto: não se resolve tal questão oferecendo-se, via o poder, mais legitimidade para as decisões pessoais, e ampliando, também via o poder, mais estrutura para que isso ocorra com maior frequência... bastaria, em outras palavras, instituir, via o poder, uma verticalidade e horizontalidade formal, ou, quem sabe, bastaria, via o poder, resgatar e mobilizar, a partir dos recursos internos e pessoais, a capacidade e o empoderamento individual, para expressar e reconhecer, no outro, o direito de também exercer e comunicar sua particularidade... É isso, não? É disso que também estou falando? Em outras palavras, de reconhecer e legitimar que não seja, apenas, uma direção arbitrária de Poder formal, mas, também, um processo de regulação pessoal e significativo que leve em conta o Poder pessoal? (...) Bem, é um pouco, um pouco mais difícil, porquanto o Poder, pelo Poder, oscila entre a Ditadura da Minoria e o Arbítrio da Maioria. O Poder instala, rompe, muda. O Poder tem sua direção, tem sua própria força. De onde surge a “força” do Poder? Qual é a natureza dessa força? (Basta perguntar, como o Poder muda, de um para outro, de uma forma de expressão para outra? É uma força Organísmica? Se, de fato, puder ser compreendida como uma faceta Organísmica, deveria ser capaz, ao mudar, integrar o movimento anterior... e não desqualificá-lo, destruí-lo... o Organismo cresce incluindo complexidades, não reduzindo. O Organismo avança não cortando, mas transformando. Dentre os critérios que avaliam o sucesso numa empreitada do Poder, existem requisitos de Integração, ou basta, tão somente, destituir, mudar e avançar? Mesmo sendo um Poder pessoal, mesmo sendo um Poder (dito) ecológico, a linha, aqui, demarcada, não é do adjetivo que tipifica o Poder, ou da geografia que o inscreve... mesmo sendo Pessoal, pode ser um Poder Organismicamente Incongruente. E como estamos discutindo, a partir de um prisma do Humanismo-Pragmatista-Experiencial, é óbvio que a atenção recai para os desdobramentos, as conseqüências, os efeitos, as maneiras de impacto, as ressonâncias que essa intervenção pode gerar no mundo... isso é uma exigência Pragmatista! Se é verdade que toda intervenção humana é Política, e todo impacto Político inclui um componente de Poder, do ponto de vista do Humanismo, interessa-nos saber não apenas a respeito das consequências, mas, também, investigar se tais desdobramentos apresentam-nos, qualitativamente, um certo frescor de abertura, de expansividade, de ofertas de crescimentos, ou se, tão somente, tratam-se de desdobramentos rígidos, numa única direção, que se referencia com base na ideologia anterior (que deve ser rompida, ou acrescida)... Não basta, apenas, um Poder que satisfaça requisitos Pragmatistas ou tão somente Humanistas. Aqui, estamos trabalhando, sobretudo, com um enfoque Organísmico, um enfoque que incorpore vida e abertura, que tem suas bases no Humanismo e no Pragmatismo-Experiencial. Se as tais dimensões do Poder são forem capazes de facilitar novos processos de crescimento e ressonâncias de maior complementaridade e de vida... então, são dimensões de Poder que ameaçam, contradizem e suprimem laços Organísmicos. É, por razões como estas, que não basta instituir, ou fomentar, mudanças e transformações, quaisquer que sejam, de quaisquer que sejam a natureza, e que não levem em consideração a complexidade experiencial e organísmica humana. Serão mudanças, sim, mas não serão experiências organísmicas. A diferença, entre a primeira e a última, é que a primeira estará vigente enquanto uma nova/outra expressão de Poder (mais forte, talvez) não surgir, e a segunda estará vigente enquanto houver Vida no Universo.

  • “Ah, estamos encharcados de Poder, o tempo inteiro, em todas as nossas interações”. Eu não sei de que maneira eu posso compreender frases simplórias como estas, MAS... é verdade que reconheço muitas expressões de Poder, especialmente nas configurações e dinâmicas sociais. Resta-nos, então, pensar de que maneira o Poder alcança a Experiência... porque são aspectos diferentes inferir que existe Poder nas interações humanas, e que existe, necessariamente, Poder em todas as experiências humanas – porquanto a segunda assertiva exige-nos a crença de que a experiência seja um produto ou uma interface social. Se, em nossa Teoria, trabalhar com a experiência é trabalhar com os fluxos da vida que significam as fronteiras e relações do Organismo, a partir, sobretudo, de uma compreensão que facilite expressões mais genuínas de sua Tendência à Realização (didaticamente segmentada em Tendência à AutoRegulação + Tendência à Atualização + Tendência Formativa), então, uma postura ou atitude facilitadora “centrada na pessoa” significa centrar-se nesses fluxos da vida, com a finalidade de co-participar dos seus processos de implicação e intumescência experiencial, de expansão e de interrelacionabilidades. O que consideramos como o “manejo experiencial” não é coisa outra diferente do manejo desses fluxos, processos e vivências a partir da apreensão singular e experiencial de cada Organismo, a partir da maneira com a qual a Inteireza ou o Funcionamento Organísmico Total apreende o conjunto de interações e processos, em outras palavras, a partir de como o Todo compreende-se em sua Totalidade. Isso quer sugerir, também, que uma coisa é considerar os modos com os quais o Todo singular apreende a sua Experiência de funcionamento Organísmico, na qual está incluída as facetas culturais, sociais, políticas e de poder, dentre outras. Mas não se trata de apreender uma ou outra, a partir das referências e enquadres de uma ou de outra. Mas a Organicidade, no seu processos de apreensão complexa dos efeitos e desdobramentos das várias interações que lhe alcançam, pode – e, eventualmente fará – fornecer uma percepção que não guarde relações, diretas ou aproximadas, com uma interpretação social, política ou de poder. Quer isso dizer que, às vezes, uma direção Organísmica e seu processo experiencial decorrente, não irá, necessariamente, resguardar a moral e o funcionamento particular de um eixo específico, porquanto estará considerando o mosaico singular dos efeitos entrecruzados (que, eventualmente, um campo específico, como o do poder, por exemplo, não é capaz de apreender). Não é capaz de apreender, por uma razão/limitação banal: o Organismo, na produção de sua autoregulação experiencial, não leva em consideração, apenas, as referências e os saberes fragmentados do antropocentrismo humano. A Organicidade é atravessada por uma sabedoria mais ampliada, que inclui expressões orgânico, inorgânico e aorgânico. As regras do Poder, por exemplo, quando muito, levam em consideração o orgânico, às vezes, raramente, o inorgânico... vamos para um exemplo, mais concreto, uma aplicabilidade para toda essa sofisticação discursiva, nessa relação “Experiência”, “Poder” e “Organismo”. Imagine-se que temos um grupo de 16 pessoas, numa sala. As tais mesmas pessoas, no turno da manhã, estão na mesma sala, como o mesmo facilitador, em uma proposta de Psicoterapia. As tais mesmas pessoas, no turno da tarde, estão na mesma sala, como o mesmo facilitador, em uma proposta de Psicologia do Trabalho. As tais 16 pessoas, em comum, são Funcionários, e estão submetidas a um projeto integrado para ressignificação das suas várias dimensões da Vida, dentre estas todas as dimensões, óbvio, inclui-se o Trabalho. O próprio facilitador também é um funcionário, desempenhando atividades técnicas, contratado pela empresa, para realizar apenas essa função de suporte e trabalho terapêutico. Esse facilitador utiliza a mesma referência teórico-metodológica na condução de ambos os processos, considerando que ele é o mesmo. Durante a manhã, no turno da Psicologia da Terapia (Psicoterapia), o referido profissional facilita Organicidade sob o enquadre de uma Psicoterapia. Durante a tarde, no turno da Psicologia do Trabalho, o referido profissional facilita Organicidade sob o enquadre de uma Psicologia do Trabalho. Nos dois turnos, óbvio, o profissional, simplesmente por estar em uma posição de liderança, exerce formas diferenciadas de poder sobre as pessoas (formas mais ou menos autênticas, ao longo do mesmo dia, ao longo das atividades, ao longo da proposta...). Dentro do grupo, os 16 funcionários exercem também formas de poder, alguns exercem poder técnico, poder de perícia, outros poder pessoal, outros poder hierárquico, e outras formas de poder. Existe, inclusive, expressões de Poder que não serão identificadas por quem as utiliza, que não serão, talvez, se quer identificadas pelo facilitador habilitado para lidar com isso (e não ser cooptado). Isso tudo é Poder. Mas não é DESSE enfoque de Poder que estou me restringindo. A Sociologia poderia, melhor do que eu, mapear esses intercâmbios. A Ciência Política, também melhor do eu, poderia interpretar vários processos. Mesmo a Psicologia e a Medicina poderiam monitorar os impactos dessas disputas na Saúde Psíquica e Física dos indivíduos. Saiamos, portanto, do senso-comum... Mesmo nessa ilustração, das 16 mesmas pessoas e mesmo facilitador, mesma Teoria, existem diferenças muito características – e que, de alguma maneira, tem a ver com o propósito exigido por uma intervenção no campo da “Psicologia da Terapia” e uma outra intervenção no campo da “Psicologia do Trabalho”. Mas é apenas isso!? Diferenças nos campos da intervenção? Ok, consideremos, pois, as variáveis (inúmeras...) que estão embutidas para ambos os campos. Vou, então, contextualizar um exemplo, e, talvez, poderíamos refletir se o tal exemplo ilustra uma questão de campos diferentes, de poder, de ambos, de outra coisa...? No trabalho terapêutico, em setting convencional, o profissional busca facilitar relações que promovam o crescimento do cliente. Se, eventualmente, a partir dessas relações de ajuda, o cliente, por exemplo, torna-se capaz de desempenhar tal atividade, tornando-se abastardo, o referido profissional que o “ajudou”, não se imagina cotista na riqueza auferida pelo então-impossibilitado cliente que não trabalhava. Não se trata de imaginar “isenção” ou perfeita “imparcialidade” do terapeuta, não se trata de acreditar que ele/ela não se utiliza do seu conhecimento, da sua técnica, das suas ferramentas para realizar certa intencionalidade na vida e relações do cliente, não se trata de fantasiar que o lugar social, político, econômico, educacional de um profissional terapeuta não exerce poder, fascínio e influência sobre o cliente, que o “simples” fato de escutar atentamente um outro, de não proferir julgamentos depreciativos acerca dos comportamentos desse outro, que esse “simples” comportamento já não impacta e produz conseqüências na relação entre o terapeuta e o cliente. Então, é óbvio que é uma relação de poder, é óbvio que, numa relação de ajuda, imagina-se o lugar de quem ajuda e de quem é ajudado, certo? Não, não é disso que estou falando, e não é isso que a Abordagem Centrada na Pessoa propõe. O objetivo do terapeuta não é o de investir-se de uma posição de quem “sabe” e pode “ajudar” o outro a ser o que ele não é. Ao contrário, o terapeuta é, ele próprio, um Organismo, uma rede de processos e experiências em interações complexas, e ele, terapeuta, reconhecendo o seu lugar de possibilidades na vida, franqueia, às demais porções da vida, o mesmo estatuto de expressão de singularidade e complexidade dinâmicas. O terapeuta, e a relação terapêutica, por conseguinte, é esse Organismo que, na variedade de suas experiências, é portador da expressão de convergências de fatores, atitudes, conhecimentos que dizem respeito à promoção de Organicidades. Nada mais, nada a menos. Nem se trata de fazer “melhor” organicidades, ou de “inovar” em Organicidades – porquanto as Organicidades são atribuições, processos e fluxos vivos e interdependentes das complexidades inerentes à vida, e não às escolhas e direções eventuais de um terapeuta. Parece-me, quando penso, escrevo e comunico isso, que faço, nesse momento, que não estou alegando que o terapeuta, nessa relação, não se utiliza do seu Poder (técnico, pessoal, dos seus encantos, dos seus talentos...). É óbvio que ele usa tudo isso... mas ele “SÓ” usa tudo isso!? Se ele “só” usar esses atributos, me parece que se trataria de uma “tentativa”, caricata, de forjar um Organismo a partir de um funcionamento onde, o próprio terapeuta, não se relaciona como Organismo. O fato do Poder ter uma direção prévia, uma sinalização prévia “de onde” seguir e do Organismo ter uma direção processual já distinguem, enormemente, os caminhos e desdobramentos. O fato do Organismo levar em consideração a complexidade máxima do seu funcionamento... que inclui seus aspectos simbólicos, mas não apenas estes... não quer dizer que tais facetas sejam preponderantes, quiçá, por absurdo, definitivas. O Poder é uma faceta do indivíduo/sujeito e das relações entre os indivíduos/sujeitos, mas, no quesito Organismo, mesmo se tratando do Organismo humano, ou da Organicidade que se expressa como humano “André”, não há como imaginar que apenas aspectos da individualidade estejam presentes. Se, o objetivo da intervenção é facilitar Organicidade, é óbvio que, no seu transcurso efetivo, os desdobramentos ulteriores dirão respeito à Organicidade e à Experiência (acompanhado, ou não, de correlatos em termos de sentimentos, aprendizados, posicionamentos etc). Organicidade não se facilita com Poder, e o resultado de Organicidade não precisa, necessariamente, apontar Poder. Então, o período da manhã foi encerrado, os 16 participantes e facilitadores foram para o intervalo. Retornam à tarde, horário para intervenção no campo da Psicologia do Trabalho. E aí? Tudo legal, tudo semelhante aos desafios já superados pela manhã!? Se, durante o período da manhã, o terapeuta lidou com as dificuldades de não “impor” traços do seu funcionamento sobre o funcionamento do outro, de respeitar, em si mesmo, a liberdade nas direções e criações do seu Organismo, a ponto de sustentar e facilitar relações Organísmicas com o outro, à tarde, talvez... outras questões para serem pensadas. Quando o cliente muda, cresce e ganha, existe um senso de “diferença” entre os dois lados da relação, de maneira que se um lado cresce, o outro lado não reinvindica os méritos e louros cabíveis na sua co-facilitação (o terapeuta solicitando contrapartidas do cliente que ficou rico, ou o cliente solicitando contrapartidas do terapeuta que ficou rico, isso, apenas, no quesito financeiro...). No caso da Psicologia do Trabalho, o crescimento da empresa é interesse do facilitador. E mesmo que não seja interesse do participante, o facilitador está, ali, para ocupar esse lugar formal. Basta imaginar uma organização pública, e um grupo de funcionários, tradicionais e acomodados, em meio de carreira. Ora, o “sucesso” do facilitador depende dele ser capaz de “promover” mudanças, não!? Ninguém irá avaliá-lo pela capacidade de escutar, respeitar e, eventualmente, compreender/legitimar o lugar dos participantes ociosos. Existe alguma diferença, no âmbito da psicoterapia? Também na dinâmica terapêutica, ainda que não se explicite, o terapeuta assume o lugar de quem promove mudanças, esse é um dos aspectos do poder que exerce, do controle que estabelece. Pode-se considerar desde as mudanças mais agressivas, até mudanças mais sutis. O fato do cliente perceber-se melhor, perceber melhor seu entorno/ambiente/relações, é um dado emergente da relação terapêutica, é um novo lugar mediado pela ação e poder do terapeuta. Então, a questão e a diferença não parece ser o exercício de poder e de influência... aparentemente, observado em ambos. Se considerarmos que os clientes, ao adentrarem as fronteiras terapêuticas, não sabem, exatamente, quais mudanças e quais processos serão mobilizados (muitas vezes, eles próprios dizem que vieram ali, por exemplo, para “largar aquela relação afetiva problemática” e descobrem, ao final do processo terapêutico, o quanto de amor reconhecem naquele espaço, ou o completo inverso...), então, se é verdade dizermos que nós não podemos prever quais serão os resultados do Organismo (se o cliente vai, ao final, separar-se ou manter sua relação, por exemplo), é verdade, também, que nós temos mais informação, mais manejo, e mais conhecimento acerca do processo de facilitação do Organismo do que o cliente, certamente nós temos. Temos, no mínimo, mais intimidade com o funcionamento desses processos, mais familiaridade com o fato que, geralmente, as reações são inesperadas... Temos, portanto, mais Poder. Temos, certamente, mais Poder para lidar com as dores agudas humanas, para enfrentar as seduções e ciladas dos clientes, para manejar os investimentos de agressividade, de medo, os arroubos de violência física e psíquica... se existe, nessa relação, um lado forte, esse lado é o nosso. Não por acaso, temos, proporcionalmente, aos olhos da República, do Estado de Direito, do Conselho Profissional, da Sociedade Civil Organizada, mais responsabilidades (como cidadãos, como profissionais, como prestadores de serviço etc). Essa não é, pois, a “questão”. Não se trata de fazer de conta que não estamos atravessados de Poder. Me parece, e reconheço que é difícil localizar essa discussão nos fóruns qualificados... Parece-me que o “nó” é, exatamente, reconhecer que, num processo de facilitação Organísmica, não é apenas o Poder que está em jogo. Porém, se for “apenas” o Poder, qualquer que seja a sua natureza e especificidade, deixa de ser Organísmico para tornar-se Regulamentação. A gigantesca questão, na facilitação de processos terapêuticos no campo da Psicologia do Trabalho não é o uso do Poder, não é, muito menos, a necessidade de responder aos vínculos sociais e de poder que a Instituição-(do tipo)Organização exige. Estamos, a todos, emaranhados em Instituições, códigos, obrigações, culturas, valores. Só, em nossa fantasia, existiria um setting blindado dessas influências. A questão, na Psicologia do Trabalho, e na facilitação Organísmica, é achar que se trate, meramente, de facilitar novas Competências. No instante em que perder os demais orbitais experienciais, para privilegiar-se um grupo ou eixo de dimensões, tornou-se um procedimento de controle. Qualquer que seja a configuração, uma intervenção Organísmica envolvendo grupos humanos terá que lidar com aspectos de Poder. Resta-nos, posteriormente, discutir nossas habilidades para “colar” e ser fisgado, tragado, “encantado”, pelas ofertas simbólicas do Poder-Prazer-Fazer.


Com este pano-de-fundo da Organicidade, da Experiência e do Poder, haveria, ainda, espaço para discutir a especificidade que distingue e aproxima intervenções terapêuticas do tipo PsicoEducativas, PsicoTerápicas e PsicoLaborais. (Mas não tenho como fazer isso agora... de uma próxima vez, de uma próxima palestra). Para concluir, três pequenas citações que podem subsidiar e ampliar o debate sobre "Poder & Experiência"...


(continua na postagem seguinte!!)

2 comentários:

  1. Gostaria de começar apontando a assertiva que o poder não existe por si so, mas na presença do outro. E so existe a partir de sua legitimação, seja ela congruente ou incongruente, a depender da reação naquele que o poder é exercido. Se, de alguma forma, o exercício de poder de um sobre o outro não se efetiva em experiência (?) o poder Tb não se efetiva. Eu ousaria ir um pouco mais longe apontando que todas as interações são manifestações políticas (para usar o termo que vc utilizou), sejam formais, de força, de pericia, pessoal ou ecológica (além de outras designações que pudermos tomar). Indo um pouco mais adiante... ainda que eu não tenha a intenção de exercer poder sobre outros, eu poderei estar a faze-lo, posto que este pode ser uma forma de poder que me é atribuído pelo outro ainda que eu não tenha a intencionalidade. Poderei então afirmar, que , não necessariamente, o exercício do poder possui um caráter regulatório?
    Vamos pegar do teu exemplo. Vc, psicoterapeuta, conduz o grupo terapêutico para facilitar organicidade utilizando TECNICAS especificas de facilitação. Teu exercício do poder não impõe nada as pessoas, permite que os fluxos ocorram. Perfeito. Eles ocorrem. Vc exerceu poder sobre o grupo. As pessoas legitimaram tua condução. Ou ainda, teu exercício de poder.
    Vamos agora ao período da tarde. Vc terapeuta vai facilitar organicidade junto a um grupo de trabalho. Utilizando técnicas especificas de facilitação. Dentro dessas técnicas de facilitação vc “permite” que outros exerçam seu poder, por exemplo, apontando formas de resolução para um determinado problema. Digamos que dentro da sua lógica de funcionamento de resolução o que foi apresentado, não seja a forma mais adequada de resolve-lo e vc insiste (estou falando aqui de conteúdo). Se, eventualmente, as pessoas do grupo não aceitarem a sua sugestão, ou ainda, a sua tentativa de exercício do poder, pq não legitimam sua pericia neste assunto, vc pode tomar outro caminho. Vc poderá tentar, então, usar o poder formal que lhe foi conferido como consultor. Neste caso, penso, embora as pessoas se submetessem a sua sugestão (pq vc esta sendo pago para encontrar a “melhor” alternativa) isto poderia ser temporário e mais; penso que isto seria incongruente com aquele grupo. Foi legitimado pq tiveram que se submeter, mas incongruente. (no que tudo isto poderia dar é outro desdobramento ao qual não vou me dedicar discutir agora).
    O fato é que, no segundo caso e na possibilidade da segunda ocorrência sua sugestão não marcou as pessoas. Elas ate podem ter sido marcadas pela sua atitude, mas não pela sua sugestão. Sua SUGESTAO não se tratou de uma EXPERIENCIA significativa para as pessoas e portanto não se efetivara, não será posta em pratica. Assim vc NÃO exerceu poder sobre as pessoas, neste aspecto (CONTEUDO). Se, e somente se, vc tivesse seguido exercendo seu poder naquilo que as pessoas te legitimam, vc poderia continuar possibilitando a facilitação no crescimento organismico daquele grupo. Eu diria que vc tentou apropriar-se de um poder que vc não tinha e em não sendo legitimado pelas pessoas, tornou-se incongruente.
    Eu poderia, inclusive, apontar outras alternativas como utilizar de arranjos de ecologia organizacional (como poder), tais como coalizões, etc, mas vamos deixar para outro momento.
    Faz sentido dentro de uma perspectiva organismica?
    Marcilia

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  2. de que poder se fala aqui? o que é poder? ele existe na experiência ou ele é sempre um reflexo de uma ação, um reflexo estabelecido pelo pensamento, pelo juizo, pelo julgamento? Organicidade está mais para Força de Abertura do que para Poder e Legitimação. Facilitar é entregar-se e não legitimar, conduzir, permirtir, possibilitar (isso nunca é dado sem um relacionamento, e de acordo com Rogers esse Encontro não se daria por uma fachada profissional ("O Psicoterapeuta", "O Facilitador"). Todos esses verbos fazem parte da relação... sim, ok, mas se percebidos dentro de um processo organísmico maior, eles não dão conta da experiência relacional que Rogers falava em Um Jeito de Ser. O poder para mim só cabe na obra do Foucualt e não em um relacionamento organísmico. Se ele se faz presente minimamente na psicoterapia, ele etá posto igualmente como tudo que reveste nossas relações hoje em dia (linguagem, comunicação, corpo, etc)... mas, todavia, ele não é foco ou necessidade do processo... sua discussão por si mesmo já tange algo fora da experiência de facilitação ou daquilo mesmo que a bloqueia. O que Rogers quis dizer para além da política no seu Sobre o Poder Pessoal?

    vi esse comentário perdido por aqui e resolvi me posicionar... contraditoriamente uma ação de poder... talvez... aparentemente... apenas isso e muito mais... O que é o poder diante de uma emoção, e vice-versa?

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