segunda-feira, 26 de março de 2012

FIRE

INOCULANDO O FOGO
Por André Feitosa

Disseram-me que os bailarinos enfrentam a gravidade – assim como os aviões, são milagres que derivam da técnica mais rigorosa: corpos de engenhosidades. Por várias demonstrações, nas salas de espetáculo ou nas oportunidades cada vez mais freqüentes; veiculadas, sobretudo, nos canais abertos, algo desse nosso corpo genérico, supostamente no contato estático da cadeira e pouco flexível no cotidiano, dali mesmo, acautelados da vertigem e do incômodo, apercebemo-nos da estranheza evocada por essa configuração "pacata" com a qual nos privamos de aprendizados mais significativos em nossas interações. Afortunadamente, todavia, há estes outros da nossa espécie, cujos saltos, vôos, flutuações e o improvável das suas rítmicas seqüestram-nos do óbvio para o despejo torrencial numa sensação de encanto. Era o primeiro sábado nas estrelas desse ano zodiacal, quando se viram movimentos de sombras e de potência, co./ga.metas de deslumbre que nos atravessam, e, às vezes, tão incrivelmente, nos emudecem atrás das nossas desventuras e pedidos secretos. Estávamos nas vizinhanças da lua mais forte em Áries, de Mercúrio, o Senhor da guerra e invasor das mudanças, e apresentações exóticas do moderno na dança percorreram Fortaleza. Não apenas a oferta de lugares superou as expectativas de ocupações, mas fartam os elogios que se difundem em um território de influências globalizadas e das mídias sociais. Originárias nas espacialidades urbanas caracteristicamente alternativas (leia-se, outrora marginalizadas, “desqualificadas” etc), trata-se de duas linguagens irmãs, no espírito de uma época criativa (por volta dos anos de 1960) – embora de parentesco geograficamente distante, nos objetivos, signos e tessituras gestuais. Quis-se, nas felizes coincidências que a vida instaura, encontrarem diferentes facetas da mesma Capital: de um lado, os movimentos recortados na dor e de provocativa lentidão, conduzidos nas trevas que findam por respingar delírio na platéia; na outra geometria, a estética sincrética da moda, do luxo, dos negócios e das transmissões virtualizadas, traduzida com uma pigmentação herege ao corpo pós-yuppies e pós-feminista (vg, Lady Gaga etc). Do imaginário pós-guerra do Japão ao centenário Teatro José de Alencar, Tadashi Endo encarna o singular do seu “Butoh” para um corpo híbrido dos inúmeros intercessores que assimilou, em uma carreira junto aos músicos, cineastas e dramaturgos, em campos do Jazz, da Ópera e da produção audiovisual alemã. Quarteirões opostos, dos Estados Unidos mitificado sob a influência do charme étnico e insinuoso do “Voguing”, do Harlem nova-iorquino no contra-fluxo e das intensas experimentações, Edgel Correa e sua Troll despistam aos hypster-atônitos..., com essa inabitual feição da energia masculina ao redesenhar os apelos embrutecidos da paixão e o paganismo na expressão dos desejos. Com sua estréia profissional nos tablados da MEET Music & Lounge, o clube vestiu-se do galanteio anfitrião que acolhe performances na tintura de luzes dirigidas em suas galerias. Se no “Butoh” do sansei Endo perseguem-se os dramas vivenciados no luto, na subtração e na despedida dos seus mestres, é no “Voguing” do belo Correa que se exterioriza a fissura do tempo prosaico numa via do sensível über-tecnológico com suas mutações. Lembrando o brilho audacioso de Daniel Peixoto, vêem-se aos raros corpos cinemáticos desses alquimistas pós-modernos, por vezes envoltos na penumbra da larga incompreensão: com maquiagem que não disfarça a inquietude no olhar, esse arché-tipo não cede à frustração nas curvas do destino, transmutando gólens imaginativos pelo ofício da sensorialidade épica. Dançam, porque a vida nunca lhes bastou – na lembrança de Gullar. Não há menos aflição, ainda que o artifício poético adote, sim, polaridades e vias magistrais (de magiar, mágico) peculiares: Tadashi aposta na contradição que, também suave, fez-nos embevecer; Edgel investe na alegria que pode intoxicar e liberar-nos da conformação míngua. Não sem razão, em seus respectivos cenários de difusão, ambas as linguagens desafiaram identidades hegemônicas e narrativas lineares, porquanto co-gestadas ao lado das turbulentas e seminais manifestações, que a posteriori, na transição dos séculos, convencionou-se enquanto um pensamento contemporâneo nas artes. Talvez, ainda não entendamos, como público geral, de quais modos desdobra-se a fragilidade imediata dos músculos e ossos em transformação cênica e dançante como estas que vimos. Quem imaginaria recriações de Butô com dançarinos da Bahia ou uma coreografia de Vogue emoldurada pelos afetos do Siará Grandi? Foi-se o tempo em que o “Butoh” e o “Voguing” eram codificações restritas aos grupos onde floresceram: desde Kazuo Ohno e Madonna, outros bailarinos descobriram alavancas para inventar a linguagem dos seus novos mundos. Nossa engenharia habitual dos corpos parados, reduzidos ao maquínico do YouTube e à ingestão de massa oleosa a frente do Facebook, quem sabe vislumbre em ocasiões como estas, as poucas razões que sacrificam nossa inércia consensual. Petrificados, somos apenas barro nas mãos aquosas desses sonhos terceiros. Servem-nos, afinal, dessa ionização sexual que não teríamos por nós mesmos. Danças que rivalizam, confrontam, resistem, perlaboram, disputam: é razoável decifrar a alma por trás da idéia? Sob o reflexo dos nossos ícones, projéteis dançam algorítmos para nós: no mesmo exorcismo dos monges, que do Butão, monopolizam a espiritualidade que não veremos como nossa.

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