sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Últimas horas de 2010

Os médicos são fascinantes. Conheci dois residentes de último período, um que é capaz de contrastar a fisiologia sob os mesmos enquadres de uma fotografia panorâmica sofisticada e altamente delicada, “é preciso um espírito detalhista e investigador”, disse-me. O outro, rapaz casado que, dias e dias antes dos seus plantões, reveste-se com o máximo da responsabilidade sempre inconclusa, e por isso mesmo esperançosa, a respeito das possibilidades que se equacionam entre os dramas com seus pacientes. É um sempre novo teste, do seu conhecimento, da sua destreza, da sua capacidade de responder, “eles pegam na minha camisa, doutor não me deixe morrer agora, aqui”, esgotada era também a sua voz, e três botões no seu peito estavam abertos - um paciente, o meu desejo, ou o cansaço dele que desabotoou?. E o primeiro moço concluiu: “somos profissionais dos meios: entre o que sabemos, o que devemos e o que podemos em face dos recursos disponíveis, protocolos, tecnologia e instrumentos, em um dado contexto real no mundo e no tempo, até onde o material e a equipe podem avançar, até onde as pressões e exigências consentem, e os corpos, do médico e do paciente, sustentam, e façamos, com isso, o máximo que nossos esforços permitam-nos, e nunca teremos como assegurar ou prometer, porque jamais alcançaremos o fim na sua margem ou distante fronteira da vida”. Médicos e policiais, à sua maneira, são as profissões do fascínio, do que foge e, novamente, cai na cilada da loucura: são os moços que litigam com a morte. Os primeiros, retardam-na com êxito, e, via de regra, como punição, seriam capazes de antecipa-la à surdina, e o segundo grupo, convocam-na a frente de uns, resguardando-a longe da vista de outros - pode ser o caso de uma punição longa e agonizante. Ambos, de todo modo, precisam despistá-la dos seus propósitos iniciais, traiçoeiros da morte, e em seu tudo de violência (por exemplo, numa cirurgia onde se cerram os ossos), enfrentam o abismo e dispõe da vista-grossa para a fragilidade que se camufla no macabro implícito e no sinistro das intervenções. Um deles ensinou-me que, diante dele, tudo está escuro: perseguições. E ao celular, sua voz era mágica. Não é preciso muito, quase aleatório – embora a coragem seja voluntária. “Abra-me uma porta”, olhando-me enquanto o vinho maculava seu raciocínio, "e algo irá encontrar o caminho até você". Encoste o suor numa das paredes duplas, e que seja qualquer uma: não se preocupe com a localização. Nascente ou poente, os ventos saberão. Se for uma viga, saberás, imediatamente, porquanto a força cessa. Uma parede ocasional, com os seus velhos tijolos cozidos na proteção ao frio e à chuva, blindagem, sobretudo, à visita inesperada, ao saque, à morte. Tijolos no barro do medo contra a fúria da natureza, e a fúria dos seus filhos: nós, dentre eles. Número um: remova alguns tijolos, com amor, e haverá uma frecha. Ar e luz podem correr. Enquanto é noite, não mais que uma mão sombria cabe no imperfeito do círculo. Mas há um tapume de madeira não espessa. Não se vê, e não há clareza no que se escuta. É o estridente de um uivo fino, distante? Não é preciso fazer nada, se não, permitir que se revele do espaço aquilo que salta no meio do silêncio. Um pouco mais de coragem, de respeito e, talvez, amor próprio: vão-se outros tijolos. Vê uma janela, poderia abrir e fechar, embora se mantenha trancada. São colisões que não podem atravessá-la? Há marcas e arranhões no lado de lá dos caibros fornidos na travessia - ainda promessa, ainda estreita. Um pouco mais de gentileza, faz-se surgir o espaço de uma porta. Tremei. Deixe que algo de fora possa tocar a porta e consultar, ainda dúbio, ainda depois de tão longa espera, se há alguém, você..., dentro dessa masmorra. Há voltas na fechadura de bronze e barras que amortecem o impacto turvo. Abrindo portas no seu labirinto. (Deserto dos Tártaros, às avessas). E se o cansaço chegar, onde havia uma parede, seria, agora, domicílio de uma passagem: lá estou sentado, bebo o chá que permanece escuro, imperfeito e jamais concluso. Haverão queridos, passantes, desconhecidos, rostos não amistosos?

"(...)
No mais profundo,
onde seu rosto é apagado,
onde a água da vida flui silenciosamente,
há uma prisão sem comida ou bebida,
e sem nenhuma regra moral,
que se abre para um jardim (...)"

-- Sanai - A boa escuridão

Eu corri do risco nesse confronto. Mas estou esgotado para o medo. Posso enfrentar, posso morrer. Talvez, se eu conseguir, posso sair ferido, com uma parte de mim para o escuro, e uma parte do escuro, comigo. É a destruição que poderá vir, de corpo inteiro. É o amor, também, finalmente, que, sem arestas, adentra o meu lar. Fragilidades para o Ano Novo é, talvez, uma conquista imensa, no lastro dessa força para o encontro. Le Sacré Couer.

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