terça-feira, 27 de julho de 2010

pedrinhas, pedrita

Publicado na Folha de SP, caderno Ilustrada - 26/07/2010
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2607201017.htm

-- "Do ponto de vista da pedra", por Luiz Felipe Pondé


NUMA MADRUGADA, afundo em cigarros e insônia. Na TV a cabo, cenas de um filme chinês, "2046 - Os Segredos do Amor", fotografia de cores fortes, músicas incomuns, mulheres lindas, ancas deliciosas que sobem e descem escadas e se arrastam entre os lençóis. O filme não deixa de ser uma ode a esse antigo vício que muitos de nós, homens, temos: a paixão pelas mulheres e a mistura de afetos que as atormenta, a beleza insustentável, a forma infiel do corpo, o tédio incurável.
Uma chinesa se apaixona por um japonês. Seu pai a proíbe de amar o japonês, afinal o ódio aos horrores da guerra causados pelos japoneses justifica sua fala. O ano é 1967.
Ele volta para o Japão. Ela enlouquece, adoece, é internada. Põe-se a falar sozinha, definha sob a opressão da saudade. Vaga pelo quarto abraçando sombras.
E, aí, o filme me ganha definitivamente. Sim, eu sei que pessoas saudáveis não sofrem assim. Mas, em minha obsessão pelos que morrem de amor, não consigo admirar quem resolve bem a vida. Tenho certa paixão por quem fracassa no combate ao afeto. Certamente, tenho algum trauma primitivo, daqueles que fundam nossa personalidade despertando nossa alma.
Tem gente por aí que se julga inteligente porque não acredita na existência da alma -pobres diabos. Eu sei que podem me achar excessivamente cético, mas eu só acredito em Deus e na alma. Em mais nada. Eu, aliás, confio mais em almas penadas. Que assustam os sonhos à noite. Sim, eu sei. Melhor aqueles que tomam remédios, fazem terapias objetivas, meditam 15 minutos diariamente e viram budistas. Mas eu me encanto facilmente por gente que, como essa heroína chinesa, adoece de amor.
Vagando pela casa tentando relembrar cada palavra dita, cada cheiro, cada silêncio, cada gosto na boca, o toque da língua, a saliva, escorrendo a mão pelos seios, numa dança doce e macabra de acasalamento. Sozinha, beijando as paredes. O rosto coberto de lágrimas, os olhos vidrados, a boca salgada, a voz rouca de tanto gritar sozinha para os céus.
A incompreensão de todos à sua volta por tamanha incapacidade de se tornar indiferente ao amor morto. Sentir-se como uma folha esmagada contra o chão, elevada pelo vento, seca de tanto afeto, evocando a misericórdia dos deuses, eis minha fenomenologia do amor.
Lembro-me do conto de Edgar Allan Poe "A Queda da Casa de Usher". Não me esqueço da doença que afeta o irmão e a irmã Usher. O talento monstruoso do melancólico Poe esmaga o leitor de sensibilidade diante da morbidez do amor impuro entre os irmãos Usher, fundando uma cumplicidade de segredos na distância entre os séculos.
A degeneração mortal dos irmãos se materializa numa sensibilidade insuportável para com os detalhes concretos da existência física. As roupas pesam na pele, os sons das palavras faladas em voz baixa rasgam os ouvidos, o paladar da língua é ferido pelo gosto sem gosto do alimento, a claridade de um dia sombrio ofusca a pupila infeliz diante do peso da luz, o ruído das relações humanas tortura o lento passar das horas, até as pedras das paredes da casa de Usher são agonia.
Miseráveis irmãos buscam a nudez, o silêncio, a fome, a escuridão, a solidão como cura. A vida, pouco a pouco, se torna morte, buscando o impossível repouso na ânsia de se fazer também pedra.
Amar é estar impregnado de uma presença, como o acúmulo dos anos se torna limo entre as pedras. Como uma forma de infecção invisível que une corpo e alma no desejo.
Sim, eu sei que se trata de um modo ruim de viver. Devemos fazer o culto da vida saudável. Mas não consigo. Encanta-me a personagem que perde a batalha contra si mesma como minha chinesa insone.
Morbidez? Pouco importa. Fôssemos apenas um bando de mamíferos alegres, ao longo de nossos milhares de anos de existência, não sobreviveríamos. A dor é que nos adapta ao ambiente hostil.
O "direito à felicidade" é a nossa grande falácia: hoje somos superficiais até do ponto de vista das pedras. Já Tocqueville, no século 19, temia que a "mania da felicidade" tornasse todos nós os tolos do futuro. Amém.


Publicado na Folha de SP, caderno Ilustrada - 10/07/2010
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1007201028.htm

-- "O teólogo marxista", por Antônio Cícero

O PROFESSOR de teoria literária Terry Eagleton, da Universidade de Lancaster, que se considera marxista, declarou há poucos dias que "Deus volta ao debate intelectual de duas maneiras: há uma polêmica contra ele, por um lado, e, por outro, um aproveitamento de recursos teológicos por parte de uma série de pensadores de esquerda declaradamente ateístas".
Segundo Eagleton, o trabalho teológico mais importante de hoje está sendo feito por ateístas de esquerda. Isso se explica porque, "quando a esquerda passa por tempos difíceis, não pode se dar ao luxo de olhar os dentes do cavalo, como se diz. E, se descobre que algumas ideias teológicas podem ser úteis, então, por que não?".
Nesse contexto, Eagleton cita Habermas, Badiou, Agamben, Zizek.
Pelo jeito, os tempos estão mesmo bicudos para os marxistas. Houve época em que eles jamais sacrificariam um princípio tendo em vista a solução de uma dificuldade conjuntural. Ora, o ateísmo e o materialismo se encontravam, para Marx, entre as mais fundamentais questões de princípio. Para ele, a crítica da religião era a condição sine qua non de toda crítica.
Agora é diferente. Primeiro, os marxistas à la Eagleton julgam a utilidade de uma ideia -e não mais apenas a de uma tática- como critério para adotá-la: isto é, aderiram ao pragmatismo epistemológico; segundo, consideram úteis as ideias teológicas; terceiro, consideram fazer o trabalho teológico mais importante de hoje.
Não deixa de ser curioso, pois "ateísta" é quem não acredita em Deus; e "teologia" é a ciência que trata de Deus. Como pode ser útil tratar-se de alguma coisa em que não se acredita, a menos que seja para negá-la? Como é possível ignorar que quem faz trabalho teológico é necessariamente teísta, ou que quem é ateísta não faz trabalho teológico?
Talvez eu não esteja sendo bastante "dialético", ao dizer essas coisas... Eles, porém, não estão sendo nada materialistas, ao se dedicarem ao "trabalho teológico mais importante de hoje".
Ora, abandonar o materialismo é necessariamente abandonar o MATERIALISMO dialético, isto é, a filosofia marxista, e abandonar o MATERIALISMO histórico, que pretende ser a ciência marxista da história. Logo, esses soi-disant marxistas abandonaram de fato o marxismo, mas não têm (exceto, sem dúvida, nos confessionário dos seus párocos) coragem de confessá-lo.
Mas creio ser possível entender por que "marxistas" como Terry Eagleton e Alain Badiou, que, segundo Eagleton, é "o maior filósofo francês vivo", abandonando, na prática, o materialismo, pretendem tornar-se teólogos. É que, antes de serem "marxistas", eles são "revolucionários", ou melhor, apocalípticos.
Recentemente a revista "Serrote" publicou um capítulo do livro "Razão, Fé e Revolução", de Eagleton. Em determinado ponto, ele tenta explicar o pensamento de Badiou.
"Para ele, a fé consiste numa lealdade tenaz ao que chama de "evento" -um acontecimento absolutamente original que está desconjuntado do fluxo suave da história e que é inominável e inapreensível no contexto em que ocorre. Verdade é o que corta na transversal da fibra do mundo, rompendo com uma revelação mais antiga e fundando uma realidade radicalmente nova [...]. Os eventos citados por Badiou são um tipo de impossibilidade quando medidos por nossos padrões usuais de normalidade."
Diga-se a verdade: são uma impossibilidade quando medidos pelos padrões universais da RACIONALIDADE. Em suma, a revolução que esses novos teólogos propõe nada tem, de fato, a ver com o marxismo, que se pretendia o suprassumo da racionalidade, pois ela consiste num milagre. "Milagres ocorrem sim", diz Slavj Zizek, também explicando o pensamento teológico do papa Badiou.
Segundo esse modo de pensar, a verdade só é discernível pelos membros da nova comunidade de crentes. A rigor, não passa, portanto, de uma crença. Comentando - e aprovando- tais teses, Zizek especula que a verdadeira fidelidade ao acontecimento é "dogmática" no sentido preciso de ser fé incondicional, de ser uma atitude que não procura boas razões e que, por essa razão mesma, não pode ser refutada por nenhuma "argumentação".
Ora, ocorre que aquilo que se imuniza contra a razão é exatamente o irracional. Em suma, trata-se do mais puro irracionalismo religioso.

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