terça-feira, 4 de maio de 2010

Ainda sobre a Lei da Anistia...

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EM NOME DO FUTURO
Míriam Leitão e Alvaro Gribel

Globo, 1.5.2010

Torturadores do Brasil, descansem em paz. Essa foi a decisão da Justiça suprema. Os que mataram, torturaram, estupraram estão perdoados. Poderão envelhecer tranquilos, sem sobressaltos, ao lado dos netos. Decisão da Justiça é para ser cumprida. Seria bom, ao menos, que não houvesse o falso argumento de que a lei foi aceita por todos os lados.
Era o ano de 1979. O último general estava chegando ao governo. Ainda ocorreria o Riocentro; os torturadores eram tão poderosos que tentariam explodir estudantes que estavam ouvindo música naquele centro de convenções. Cinco anos depois, o poder militar estaria ainda forte o suficiente para mobilizar seus áulicos e impedir a aprovação das eleições diretas.
Não havia ambiente para mais nada a não ser aquela lei. Ela traria de volta todos os que tinham ido embora. Era deixá-los lá ou aceitar aquelas condições. Por isso, a mesma OAB que, um dia, negociou a lei da Anistia, agora propôs que ela seja revista. Não há contradição. Trinta e um anos depois, os advogados sugeriram uma revisão. É normal que tivessem dúvidas sobre a validade de uma lei que foi negociada sob um regime de exceção. A Justiça entendeu que a lei vale. Cumpra-se.
Não seria bom, no entanto, que se subvertesse o sentido do slogan "Anistia ampla, geral e irrestrita". Ele nunca significou, no coração de quem o empunhou, o perdão aos torturadores. Que os historiadores não se confundam com o lema. O regime queria anistiar só alguns dos opositores. Os opositores queriam que a lei valesse para todos os perseguidos pelo regime. Por isso, se pedia que a anistia fosse "ampla, geral e irrestrita". As três palavras, meio redundantes, eram usadas para enfatizar o sonho de que ninguém fosse deixado para trás. Aquela foi a lei possível, o passo possível, a negociação possível. Um dos lados ainda tinha armas empunhadas. Não foi uma negociação de iguais.
Também não há comparação possível entre crimes dos dois lados. Em um dos lados estava o Estado — sustentado pelos impostos dos brasileiros, constituído pela Nação brasileira — usando o seu peso e poder de forma espúria. Do outro, pessoas que, se erraram, foram punidas dolorosamente: presas, torturadas, exiladas e condenadas por cortes marciais. Não foram alcançadas pelo devido processo legal. Não havia ordem constitucional. Foram, quando muito, defendidos nos retalhos do Direito, nos quais se agarravam os advogados dedicados à causa. O ideal seria que a decisão do STF não consagrasse a ideia injusta de que houve um embate em condições de igualdade e que nenhum dos lados foi punido. Foi uma guerra suja, desproporcional, desequilibrada. Só um lado pagou o preço do confronto: o mais fraco.
Que a palavra final da Justiça repouse sobre o argumento mais robusto de que é preciso fazer a conciliação nacional. O Brasil tem uma agenda cheia pela frente. Precisa correr atrás dos seus sonhos de país mais justo, mais forte, com crescimento sustentado. O Brasil tem muitas mazelas. É convincente o argumento de que os esforços precisam se concentrar na construção do futuro. Que se deixe, então, o passado ser passado.
Há o argumento de que feridas assim só são curadas quando expostas e tratadas. É um bom argumento, mas perturbador da ordem que a maioria dos ministros do Supremo preferiu defender. O Brasil sempre escolheu a fuga para a frente, em vez de encarar os erros. O STF foi coerente com esta compulsão nacional de esquecer o inesquecível. Dois ministros sustentaram a tese de que a tortura é crime hediondo, que não poderia ter sido alcançada pela anistia. Perderam a discussão, mas representaram democraticamente uma corrente discordante do pensamento majoritário. A maioria indicou ao país o caminho do silêncio sobre os crimes cometidos no aparelho do Estado contra seus cidadãos.
Os ministros vencedores não devem se enganar sobre a natureza da escolha que fizeram: o não julgamento significará o silêncio. Não haverá informação oferecida de bom grado por quem a escondeu até hoje. Não se saberá o que se passou. As famílias não enterrarão seus mortos, os arquivos nacionais não terão os documentos necessários para se contar a história como a história foi. Continuará o pacto do silêncio que faz hoje uma nova geração das Forças Armadas encobrir o que foi feito pela geração anterior. Continuarão nos quartéis as comemorações de dias fúnebres como o 31 de março como se fossem datas cívicas. Os novos soldados serão ensinados que seus antecessores cumpriram o dever e defenderam a pátria. Assim quis a Justiça. Acate-se.
Alguns ainda vão murmurar que só é possível evitar a repetição de um erro quando o erro é entendido plenamente, mesmo que isso seja um processo doloroso. Boa tese, mas minoritária na corte.
É tentadora e reconfortante a ideia da concórdia nacional. Que o país feche então esse capítulo e siga seu caminho tirando o melhor dessa decisão do Supremo Tribunal Federal. Há uma série de problemas a enfrentar no Brasil. Que se aproveite o melhor do tempo presente, que o país se dedique a remover os obstáculos ao fortalecimento da democracia, à redução das desigualdades, ao aumento da eficiência da economia, à proteção ao patrimônio natural, ao combate à perturbadora chaga da corrupção. Que a decisão do STF não seja pretexto para reescrever o passado, igualando vítimas e algozes. Que tenha sido tomada em nome do futuro.


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TORTURA, POR QUE NÃO?
Maria Rita Kehl

O Estado de S.Paulo, 01/05/2010


O motoboy Eduardo Pinheiro dos Santos nasceu um ano depois da promulgação da lei da Anistia no Brasil, de 1979. Aos 30 anos, talvez sem conhecer o fato de que aqui, a redemocratização custou à sociedade o preço do perdão aos agentes do Estado que torturaram, assassinaram e fizeram desaparecer os corpos de opositores da ditadura, Pinheiro foi espancado seguidas vezes, até a morte, por um grupo de 12 policiais militares com os quais teve o azar de se desentender a respeito do singelo furto de uma bicicleta. Treze dias depois do crime, a mãe do rapaz recebeu um pedido de desculpas assinado pelo comandante-geral da PM. Disse então aos jornais que perdoa os assassinos de seu filho. Perdoa antes do julgamento. Perdoa porque tem bom coração. O assassinato de Pinheiro é mais uma prova trágica de que os crimes silenciados ao longo da história de um país tendem a se repetir. Em infeliz conluio com a passividade, perdão, bondade, geral.
Encararemos os fatos: a sociedade brasileira não está nem aí para a tortura cometida no País, tanto faz se no passado ou no presente. Pouca gente se manifestou a favor da iniciativa das famílias Teles e Merlino, que tentam condenar o coronel Ustra, reconhecido torturador de seus familiares e de outros opositores do regime militar. Em 2008, quando o ministro da Justiça Tarso Genro e o secretário de Direitos Humanos Paulo Vannuchi propuseram que se reabrisse no Brasil o debate a respeito da (não) punição aos agentes da repressão que torturaram prisioneiros durante a ditadura, as cartas de leitores nos principais jornais do País foram, na maioria, assustadoras: os que queriam apurar os crimes foram acusados de ressentidos, vingativos, passadistas. A culpa pela ferocidade da repressão recaiu sobre as vítimas. A retórica autoritária ressurgiu com a força do retorno do recalcado: quem não deve não teme; quem tomou, mereceu, etc. A depender de alguns compatriotas, estaria instaurada a punição preventiva no País. Julgamento sumário e pena de morte para quem, no futuro, faria do Brasil um país comunista. Faltou completar a apologia dos crimes de Estado dizendo que os torturadores eram bravos agentes da Lei em defesa da – democracia. Replico os argumentos de civis, leitores de jornais. A reação militar, é claro, foi ainda pior. “Que medo vocês (eles) têm de nós.”
No dia em que escrevo, o ministro Eros Graus votou contra a proposta da OAB, de revisão da Lei da Anistia no que toca à impunidade dos torturadores. Para o relator do STF, a lei não deve ser revista. Os torturadores não serão julgados. O argumento de que a nossa anistia foi “bilateral” omite a grotesca desproporção entre as forças que lutavam contra a ditadura (inclusive os que escolheram a via da luta armada) e o aparato repressivo dos governos militares. Os prisioneiros torturados não foram mortos em combate. O ministro, assim como a Advocacia Geral da União e os principais candidatos à Presidência da República sabem que a tortura é crime contra a humanidade, não anistiável pela nossa lei de 1979. Mas somos um povo tão bom. Não levamos as coisas a ferro e fogo como nossos vizinhos argentinos, chilenos, uruguaios. Fomos o único país, entre as ferozes ditaduras latino-americanas dos anos 60 e 70, que não julgou seus generais nem seus torturadores. Aqui morrem todos de pijamas em apartamentos de frente para o mar, com a consciência do dever cumprido. A pesquisadora norte-americana Kathrin Sikking revelou que no Brasil, à diferença de outros países da América latina, a polícia mata mais hoje, em plena democracia, do que no período militar. Mata porque pode matar. Mata porque nós continuamos a dizer tudo bem.
Pouca gente se dá conta de que a tortura consentida, por baixo do pano, durante a ditadura militar é a mesma a que assistimos hoje, passivos e horrorizados. Doença grave, doença crônica contra a qual a democracia só conseguiu imunizar os filhos da classe média e alta, nunca os filhos dos pobres. Um traço muito persistente de nossa cultura, dizem os conformados. Preço a pagar pelas vantagens da cordialidade brasileira. “Sabe, no fundo eu sou um sentimental (…). Mesmo quando minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar/ Meu coração fecha os olhos e sinceramente, chora.” (Chico Buarque e Ruy Guerra).
Pouca gente parece perceber que a violência policial prosseguiu e cresceu no País porque nós consentimos – desde que só vitime os sem-cidadania, digo: os pobres. O Brasil é passadista, sim. Não por culpa dos poucos que ainda lutam para terminar de vez com as mazelas herdadas de 21 anos de ditadura militar. É passadista porque teme romper com seu passado. A complacência e o descaso com a política nos impedem de seguir frente. Em frente. Livres das irregularidades, dos abusos e da conivência silenciosa com a parcela ilegal e criminosa que ainda toleramos, dentro do nosso Estado frouxamente democratizado.

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