quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Em cores e dores

Semana da Psicologia FANOR, em cores e dores...
Informações: http://www.fanor.edu.br/acontece/vem-ai-a-i-semana-de-psicologia-fanor-devry-brasil/314





terça-feira, 9 de agosto de 2011

esse fauno, esse amor




Conferência com Dr. Custódio Almeida e Dr. Manfredo de Oliveira
31 de Agosto, 16h, UFC - Campus do Pici

(...) Para aqueles que não sabem, o Prof. Manfredo Oliveira está entre os mais importantes dos filósofos brasileiros. O Prof. Custódio Almeida é um Filósofo de trajetória criativa, originalmente da Lógica e da Computação, migrando, posteriormente, para a Psicanálise (foi Supervisor de muitos profissionais respeitados, dentro e fora do Estado), tem um profundo conhecimento em Hermenêutica, e... aceitou um convite público para refletir a propósito de uma categoria antropológica das mais intensas na experiência humana: Éros-Amor... Padecemos na angústia e no ardor do amor, sofremos do inaudito do amor, do amor interdito, do amor tardio, do amor incompleto, do amor excessivo, do amor desviado, do amor que se mantém compartilhado, do amor que já não satisfaz, do amor que nunca chegou, do amor que já não basta, do amor impossível, do amor de todas as artes, do amor que sobressalta a todos os nossos momentos... O que é isso, essa força, esse fauno, esse amor?



Inscrições:
http://www2.virtual.ufc.br/casa/index.php?option=com_ckforms&view=ckforms&id=2&Itemid=30

domingo, 7 de agosto de 2011

eles não eram os mais fortes

(...)

Os brancos não tinham razão, eles não eram os mais fortes quando desembarcaram na ilha. Seus canhões só atiravam uma vez em cada três tentativas, de nada serviam contra as flechas envenenadas. Seus motores estavam sempre em pane e deviam ser reparados a cada dia em um rio de graxa e de xingamentos. O Livro Santo de seus pastores permanecia mudo como uma tumba. As drogas de seus médicos agiam tão erraticamente que dificilmente se podia distinguir seus efeitos. Seus altos funcionários esperavam ser transferidos ou vencidos pela febre amarela. Seus geógrafos se enganavam sobre cada nome que eles atribuíam aos lugares familiares.

Seus etnólogos se ridicularizavam, a cada hora do dia, por suas gafes e grosserias. Seus mercadores não sabiam o valor de coisa alguma e punham no mesmo saco a os totens, os porcos selvagens, as castanhas de caju, todas as tralhas… Não, eles não eram os mais fortes, esses brancos não iniciados, tremendo de febre e que, no dizer dos nativos, fediam fortemente a peixe ou carne estragada. Entretanto, graças a eles a ilha tornou-se arcaica, primitiva, pagã, mágica, pré-mercantil, pré-lógica, pré-tudo. E eles, os brancos, tornaram-se o mundo moderno.

Donde a questão que se coloca nas bordas dos países devastados: como esse punhado de gente fraca, ilógica, vulgar e descrente, pode vencer as multidões bem religadas e bem policiadas? A resposta é simples. Eles foram mais fortes que os mais fortes porque desembarcaram juntos. Não, melhor que juntos. Eles desembarcaram separadamente, cada um na sua ordem e pureza…

O pastor só falava da Bíblia, à qual ele ligava toda a eficácia de sua missão. O administrador, com seus regulamentos e insígnias, relacionava todo seu esforço à missão civilizadora de seu país. O geógrafo, com os sábios, só falava da Ciência e de seu avanço. O mercador, entre os mercadores, atribuía todas as virtudes de sua arte ao ouro, ao tráfico e à Bolsa de Londres. O soldado, entre os soldados, só obedecia a ordens, despreocupado com o resto e atribuindo à Pátria o sentido de tudo o que ele fazia. O engenheiro, com suas máquinas, atribuía aos motores toda a eficácia do progresso.

Cada um acreditava estar em uma ordem à parte das outras e forte por suas próprias forças. É por isso que todos disputavam entre si e desprezavam uns aos outros. O administrador denunciava nos seus relatórios a avidez do comerciante. O sábio achava escandalosa a evangelização do pastor, o qual estigmatizava as sevícias da administração e o ateísmo do sábio. O etnólogo desprezava todos os outros, enquanto extirpava um a um os segredos dos nativos, tirando mitos e genealogias do nariz deles. Cada um se acreditava forte por causa de sua pureza — e muitos, com efeito, era uma gente corajosa que só pensava na fé, na insígnia, na Ciência ou na Bolsa.

Entretanto, todos o sabiam, eles só permaneciam na ilha graças aos outros. Muito fraco para fazer Deus sair de sua Bíblia, o pastor precisava dos soldados e dos mercadores para encher sua igreja. Muito fraco para impor a venda de totens apenas pela potência do ouro, o mercador precisava do padre e dos sábios para os tornar sem valor. Muito fraco para dominar a ilha apenas com o atrativo das ciências, o sábio precisava das pilhagens e da servidão, dos carregadores e dos intérpretes que lhe dava o administrador. Todos se ajudavam, sem querer confessá-lo e por debaixo do pano, sem nada perder de sua pureza (segundo os próprios), sem cessar de atribuir sua força a seus deuses domésticos — ouro, convicção íntima, justiça, rigor científico, racionalidade, máquinas, livros-caixa ou cadernos de notas…

Se cada um tivesse vindo em separado, teriam sido caçados pelos habitantes da ilha. Se tivessem vindo todos unidos, partilhando as mesmas crenças e os mesmos deuses, misturando as fontes de potência como os conquistadores antigos, teriam sido caçados mais facilmente ainda, visto que matando um deles, todos os outros seriam feridos, e duvidando de um só deus, os ídolos de todos os outros afundariam. Eles vieram juntos, cada um separado e isolado na sua virtude, mas todos sustentados pelo bando.

Com essa teia, infinitamente frágil, eles paralisaram todos os outros mundos, pescaram todas as outras ilhas e singularidades, dobraram por um tempo todas as redes e tranças. Eles não eram os mais fortes, eles não eram os mais razoáveis, eles não o são mais hoje em dia — aqueles que inventaram o mundo moderno.

(...)

Bruno Latour - Intemède V
Les Microbes - Guerre et Paix (A.M. Métailié, 1984)

Trecho compartilhado em:
http://www.somenteaverdade.com/author/kaslu/page/4

sábado, 6 de agosto de 2011

butoh

Fonte: http://yasmimflores.multiply.com/reviews/item/10

Butoh: uma filosofia da percepção para além da arte

Nourit Masson-Sékiné
Palestra ministrada na Fundação Japão, São Paulo, em 2 de fevereiro de 2006
Tradução de Bernard Aygadoux

I
Gênese da nova orientação da arte pós-guerra

No decorrer da segunda metade do século 20, através de um processo que vem se desenvolvendo desde seu início, uma nova orientação da arte põe em andamento a redescoberta da energia do corpo como revelação do tempo real.
Assistimos então a um processo de criação coletiva fundamentada no encontro e na troca. Os limites entre as artes se chocam, o que permite uma circulação e uma sinergia que darão origem a uma nova afirmação do lugar da arte na sociedade. Motor de reflexão ontológica sobre a vida, sobre o humano e sobre a ética. A arte torna–se mais radicalmente o local onde todas as resistências se expressam. Pesquisa de formas abertas, destruição da noção de obra circunscrita pela política econômica do mercado da arte. A multiplicação do discurso sobre a arte torna-se uma parte importante da obra e do ato criador. O trabalho sobre o efêmero, a busca de identidades, e o renascimento do corpo orgânico e biográfico do artista são mostrados pelo imediatismo do ato criador e de sua produção no espaço. O artista se torna sua própria ferramenta. Ele não é mais unicamente o sujeito criador, mas objeto da criação. Ele não é mais o artesão de uma só técnica, mas coloca, como axioma, a pluridisciplinaridade como ato constituinte da criação. Surgem então, atos pontuais enquanto importantes reveladores de uma nova era.
A vanguarda manifesta-se, sobretudo em radical oposição ao realismo da representação.
Empurrados pela emergência de um gênero de novas preocupações, os anos 50’ marcam a desfiguração da ordem estabelecida na história das artes. Os artistas dessa época vão sistematicamente recolocar em questão a existência e as propriedades físicas da obra.
Em 1946, Lugio Fontana publica pela primeira vez em Buenos Aires o “Manifesto Branco”, preconizando o abandono do uso das formas conhecidas da arte pelo desenvolvimento de uma arte baseada na unidade de tempo e de espaço. Para ele, o objetivo não era de se fazer um quadro, mas de se abrir o espaço, criar para a arte uma nova dimensão, ligá-la ao cosmos assim como ela se estende, infinita, além da superfície plana da imagem. Diante disso, Fontana literalmente dilacera suas telas com uma faca, abrindo uma terceira dimensão - a da profundidade do vazio. O conhecimento experimental substitui o conhecimento através da imagem: expressar os sentimentos, mais do que ilustrá-los; mais por ações, do que por imagens. Tal é o desafio colocado pelos artistas da época. Furos e cortes são como um ato de possessão arcaica, uma aplicação da violência produzida pelo gesto e pela abertura.
Em 1951, o filme de Hans Namuth é apresentado no MoMA (Museum of Modern Art – Nova Iorque), mostrando como Jackson Pollock dança em torno de uma tela colocada no chão, deixando escorrer a tinta diluída sobre o suporte, ou projetando-a segundo a energia do momento. Este filme é apresentado em Tóquio no mesmo ano, provocando impacto direto sobre o pintor Yoshihara Jiro, futuro líder do grupo Gutai. Em 1954, o Gutai já se constitui como uma “Associação de Arte Concreta” que reúne uma quinzena de artistas. Em 1955, o grupo se configura como um grupo de ações artísticas e teatrais no Kansai. O pós-guerra japonês marca uma nova era na história do país. Os artistas reagem então contra a presença americana em seu solo e, ao mesmo tempo, contra as estruturas fixadas pelas suas próprias tradições e sistemas de valores. Nesse sentido, os artistas alimentam sua imaginação com todos os componentes da cultura ocidental que os fascina e os estimula a reencontrar sua própria marca,
bem como sua própria cultura na história da modernidade.
Kazuo Shiraga imprime seu corpo banhado na lama sobre grandes telas ou ainda suspenso por uma corda, ele se projeta no vazio. Seus membros, como espátulas, espalham a cor ao acaso do movimento contra os suportes no chão. Todos os sentidos são postos à prova. O público, ele mesmo, não é mais unicamente uma testemunha passiva frente à obra. Na ocasião de um vernissage, o público se deixa surpreender enquanto entra no espaço das instalações e faz rasgos nas telas de papel. Desorientado, deslocado de seu status de testemunha anônima, ele se torna parte agregada da obra. Seus sentidos são solicitados, individual e coletivamente no imediatismo da ação. Outro personagem japonês, solista do coletivo, Tetsumi Kudo denuncia a impotência sob todas as suas formas e acentua as pulsações sexuais nos nossos comportamentos. Ele cria instalações com enormes falos suspensos ao teto (em 64’, no festival da livre expressão - “Instant sperm” em 68’). Tal é o movimento revolucionário da vanguarda japonesa dos anos 60’ com grupos como: Zero Jigen, (dimensão Zero), Kuro Hata,(Bandeira Negra), Kokuin (Sombra Palavra). Estes grupos organizam numerosas manifestações de rua e “happenings” subversivos. Seus líderes são detidos regularmente e suas ações às vezes proibidas. Estamos num Japão em estado de crise com uma população que se recusa, em 1960, a aceitar a renovação do tratado de segurança com os americanos. É igualmente no decorrer desses anos de turbulências que se forjam as idéias que darão início ao Butoh. O Butoh não é um caso isolado, mas o exemplo de um movimento artístico de resistência sociocultural fora dos grupos políticos.
Todas as ações dos artistas do pós–guerra no mundo moderno tendem a universalizar a arte, a sair da influência específica da tradição, das amarras da burguesia e de suas convenções estéticas e técnicas. Mais do que a perenidade da arte e seu comércio, são a exploração do sentido e dos sentidos, a comunicação imediata e física com o público que parecem se impor
como uma última necessidade. Não somente a separação dicotômica entre ator e espectador é abolida, como também se abole a separação entre arte e vida, o que mais tarde é levado ainda mais longe, abolindo-se a separação entre corpo simbólico e corpo real. Um fabuloso fenômeno de efeitos de pólvora incendeia o Ocidente e o Oriente num mesmo movimento. E todos se inspiram mutuamente.
No Tao e no I-Ching, inspiração de diversos artistas, encontramos a idéia de arte como via para se atingir o conhecimento. No Livro do Chá, podemos aproximar as idéias da não-dualidade, premissas de todos os conceitos que irão subverter essas últimas décadas, sobretudo a dicotomia entre criação e criador. Jerry Grotowsky criou na Polônia, em 1947, o “Teatro Pobre”, com a idéia de que o teatro não é um fim em si mesmo. Renunciando a qualquer decoração, o corpo do ator se oferece a si mesmo; “imbui-se do papel” e é levado, sem descanso, ao “zero ativo” de sua presença. Trata-se de uma forma pela qual o ator pode estudar a si mesmo e se explorar, inscrevendo sua vida e seu jogo sem distinção, numa marcha contínua de liberação das barreiras do ego. Ele deve sacrificar, sem julgamento, sobre o altar da verdade fragmentada do ser, todas suas trapaças sociais e todos seus segredos. O músico John Cage, por exemplo, está possuído pelos conceitos do Zen Budismo que estudou com o mestre Suzuki. Ele se inspira no I Ching (Livro das Mutações), para compor “Music of Changes”, em 1951: “ele discursava sobre o Zen, lia passagens inspiradas no Mestre Eckart, pontuando sua conferência com longos intervalos de silêncio”. Do alto de uma escada, os artistas liam seus poemas, enquanto Merce Cunningham e outros dançarinos preenchiam o espaço. Como uma colagem de ações, os princípios da arte pictórica são deslocados em direção a atos teatrais. Todas as combinações são exploradas: música, vídeo, slides, filmes, poesia, dança e rádio; o único denominador comum é a existência desses mesmos elementos num mesmo local. Circulação espontânea entre o artista e a sua arte. Os alunos diretos ou indiretos de John Cage (Caes Oldenburg,
Yoko Ohno, Jim Dine, Allan Kaprow, Georges Brecht ou Dick Higgins), perpetuam as ações da arte que se faz mostrar nas garagens, nos apartamentos ou em outros locais incongruentes. Os encontros são como festas momentâneas, não premeditadas, como rituais que remetem à dialética do sagrado e do profano. Para os artistas de renome dessa época, o reencontro com o Oriente desencadeia uma criatividade infinita que estimula a formação de um painel de novas visões e reflexões e permitirá a transformação progressiva da atitude “imperialista ocidental” frente aos conhecimentos de outras culturas. Cage refere-se também à indeterminação, ao acaso e ao efêmero, que são submetidos às leis da vida. Somente viver o momento presente, a separação das hierarquias e das cronologias. As rupturas com as origens e com o passado marcam um mundo fora da história, suspenso e inocente.
Para os artistas nova-iorquinos do final dos anos 50’, a pulsação criativa expressava-se através de duas tendências antitéticas: por um lado, expressionismo e zen, a necessidade de se levar o corpo aos seus limites, aos tumultos do ego; por outro, a aspiração ao vazio, eliminando a expressão pessoal para se fazer tornar visível o silêncio.
Em 1962, surge o movimento Fluxus na mesma época da Pop-Art. Esse movimento visa livrar o indivíduo de toda forma de alienação. Ele é o centro das nacionalidades, das diversas tendências, dos mais diferentes artistas. Vários deles passaram pelo Zen ou pelas sabedorias espirituais: fazem parte um número infinito de nomes como Joseph Beyus, Bem Vautier, Yoko Ohno e John Lennon ou Nam Jum Paik e tantos outros – impossível citá-los todos.
No “body-art”, também nascido nos anos 60’, o corpo do artista existe como último dado da criação e do desejo criador. Ele é suporte e meio e sua expressão é uma tentativa de comunicação não-lingüística. A arte de travestir é uma das expressões do “body-art”. Ela é a evocação do indefinido, da ambivalência, do distúrbio de identidade, mas também do movimento, da transformação ou da metamorfose.
Na França, os “happenings” de Ives Klein ilustram perfeitamente estas idéias. Em 1958, ele remove seus quadros da galeria Íris Clert e convida o público ao vernissage de paredes vazias, pintadas por ele de branco. Colocação do conceito de vazio no espaço – o local e o instante tomam lugar. É o ato maior de Yves Klein, impregnado de extrema filosofia oriental. A transferência simbólica das noções de energia e do vazio consiste o quadro de questionamentos sobre a essência do ser real e de seus valores. O vazio é proposto como ética.

A noção de Performance
É importante também definir o que é performance, pois uma rotulagem dada ao espetáculo de Butoh tem um sentido particular, próprio de sua vocação.
Contrariamente aos “happenings” e suas ações, tais como acabamos de mostrar, na noção de performance a intervenção individual, verbal, multimídia, musical ou dançada, coloca o público no papel de espectador, ativando suas forças sociológicas ou psíquicas. O termo “performance” significa “realização”. Realização pública assim como obra de arte. Local quase ritualístico, onde o campo das percepções é ativado e posto à prova, em toda extensão do espaço.
Pode-se dizer que a performance nasce do encontro e da decomposição de todos os códigos artísticos. É o lugar onde pode existir a teatralidade sem teatro e a pictorialidade sem pintura. A performance, tal qual se forma no início dos anos 70’, existe na visão de inúmeros precursores . Marinetti, artista futurista, já em 1913, em seu manifesto o “music-hall”, aspirava a uma arte profanadora das artes do passado, capaz de engajar uma relação direta com o público e afirmar a primazia da arte criadora. É assim que explodem as ações do Dadaísmo e de todos os primeiros escândalos da arte do século.
Não há um único significado da palavra “performance”; há um fenômeno suscitado por um
impulso de conivências entre as mídias exploradas e em todos os países onde a atividade artística da vanguarda se desenvolve. É importante recordar a gênese dessa nova forma, ou seja, o aspecto da resistência à cultura “burguesa”. O ator é um rebelde, um insubmisso que expressa sua liberdade individual. Ele recusa o princípio da obra finalizada e por isso sua ação pode variar, transformar–se de um local e de um tempo a outro e assim manifestar os frutos da experiência. Trata-se de uma atitude frente à vida, tanto do ponto de vista do domínio estético, quanto político. Os questionamentos artísticos se enriquecem com todas as aproximações que colocam em questão o conjunto do sistema social e político. Estamos situados na energia das ideologias da contracultura dos anos 60’ e das declarações onde os artistas acusam a sociedade de fazer das artes um meio de prestígio e não um canteiro de comunicação.

Primeira conclusão
Estamos no dia seguinte do holocausto, depois de Hiroshima e Nagasaki, mas também durante a Guerra da Coréia e do Vietnã, nas quais mergulha uma América traumatizada. Havia então no mundo uma forte onda de rebelião, generalizada nos países ocidentais e no Japão. O fenômeno Butoh fazia parte deste movimento identificador global. Atravessando a história dessas décadas, percorremos países e paisagens culturais, nomes, obras, ações e ideologias. Políticas e apolíticas. Na realidade, a cronologia e os locais onde nasceram os conceitos intelectuais são difíceis de se determinar com precisão. O que é, entretanto, importante de se lembrar, é que a sinergia entre os seres é o motor essencial da criação das artes experimentais. Sem dúvida, não haveria terreno propício para a vanguarda sem essa dinâmica entre os gêneros, sem os encontros, os mestres pensadores, a tradição e o patrimônio cultural de cada artista. O exemplo dessas vanguardas confirma a possibilidade de se pensar ‘o político’ sem necessariamente
aderir-se a um grupo político. Isso nos faz voltar a um dos ensinamentos fundamentais do Butoh: se não há separação entre a arte e a vida, é porque a vida é um treinamento constante; é porque a vida é uma arte de ser em si próprio, ao próximo e ao mundo, e que a arte então, pensamento político no nível mais nobre, espiritual talvez, é uma preocupação do mundo, um espelho daquilo que, através da resistência, a impulsiona na criação.

II
O erotismo do ser no mundo :
Butoh ou a arte da não-dança

Ao longo de minha apresentação sobre o contexto no qual o Butoh se formou, intencionalmente citei mais nomes de artistas plásticos ou de atores, pois de forma geral, mesmo que dançarinos de Butoh tivessem por vezes estudado a dança clássica e moderna, eles estavam justamente rompendo com essas formas ocidentais que não correspondem à morfologia japonesa. Todos os métodos do Butoh irão se apoiar sobre a exploração dessas diferenças para mostrar o “corpo cultural”. Na primeira geração, numerosos artistas plásticos e atores congregaram as primeiras manifestações do Butoh. Vimos que a introdução do corpo e do sujeito como obra ultrapassa a questão das divisões entre as ferramentas artísticas, para se estender à essência da criação. Quando Kazuo Ohno, um dos dois precursores do Butoh, falava de uma pintura ou tela, ele falava do “butoh” do artista em questão. O termo Butoh tornava-se em sua boca um termo genérico para falar de uma essência de ser, de uma consciência das origens no fato da criação.
O Butoh resistiu ao tempo. Formalizou-se e afirmou-se no decorrer dessas três décadas. Não pára de chamar a atenção de artistas, universitários e de um público novo. Tatsumi Hijikata, mestre do Ankoku Butoh (dança das trevas), esperava que o Butoh viesse a se tornar uma
filosofia, mais do que uma técnica ou um estilo de dança. O Butoh não somente sobreviveu aos anos de tumultos generalizados, como conseguiu iniciar uma reflexão que ultrapassa a dança e a especificidade japonesa.
O Butoh veicula um questionamento essencial, desligado de toda convenção social. Foge, assim, dos modismos. Hijikata escrevia: “uma dança pré-concebida, feita para ser exibida não tem nenhum interesse. A dança deve ser absurda...eu quero mostrar os aspectos da vida que habitualmente não aparecem, como o que acontece entre dois dedos, por exemplo”. (shades of darkness, p.185)
Alguns demonstrarão que o Butoh fornece as bases da terapia corporal. Esta idéia se baseia naquela de que toda arte, por lhe ser permitida a exploração e acesso à interiorização do ser e de seu inconsciente, é terapêutica. É possível renovar infinitamente as propostas terapêuticas, mas me parece aqui mais interessante responder à questão visionária de Hijikata que, após os primeiros anos de agitação voluntária e de atos subversivos, forjou as chaves de uma nova linguagem, moldada em todas as dimensões do ser, para se ter acesso aos estratos sensoriais da carne como proposta filosófica: “o Butoh não é uma filosofia, mas quem sabe, ainda nascerá do Butoh uma filosofia”.
Não se trata de se fazer a qualquer preço a dança, mas de ser motivado para alguma coisa que não seja revelado de repente. “Conseguir ficar mudo, mais do que mover-se; não se tornar alguma coisa, mas tornar-se o nada, um espaço vazio pronto a saltar em direção a uma próxima dimensão”. Mais elegância, então, entre objeto e sujeito: eu não danço o lugar, eu sou o lugar. Eu não danço, eu sou a dança, o dançado e o dançante; eu sou o espaço e o tempo e tudo o que é. A união do perceptor, do percebido e da percepção são os três fatores do conhecimento, seja a definição de absoluto (ou de Deus) para todas as tradições místicas do mundo (de Maimônides a Buda, do mestre Eckart a Ibn Erabi, ou os Upanishads). Daí
nascerá uma dança da não-dança, pois esta não está restrita à representação, à expressão ou ao movimento ginástico, mas à renovação dos mundos por eles mesmos, pela ligação de todos os campos sensoriais que residem intrinsecamente na carne, e por isso é necessário estar presente.
Marc Alain Ouaknin, pensador franco-judeu, ao desenvolver o pensamento do filósofo Levinas, escreveu: “O segredo aparece sem aparecer, ele surge no equívoco. O caráter erótico do ser do mundo, de objetos e pessoas, reside às vezes no mundo mesmo. Quer dizer, pessoas e objetos possuem, elas mesmas, essa dimensão ambígua visível/invisível que torna possível uma manifestação e uma exposição radicais. A fenomenologia do Eros traz uma metafísica que está em movimento e que remete à transcendência, onde transcendência não significa a aproximação daquilo que é, mas seu respeito. A verdade como respeito do ser, eis o sentido da verdade metafísica.” (“Méditations érotiques” p.42)
Para Kazuo Ohno, o corpo é forçosamente erótico, porque ele nasceu de um ato sexual. E por uma lógica misteriosa, entre milhões de espermatozóides, o óvulo só escolherá um para fazer a fusão e fecundar, em detrimento de todos os outros. Na história dessa corrida repleta de espermatozóides para atingir o óvulo, a seleção irracional mostra tanto a vida como a morte desses milhões que o corpo guarda na memória. Também o corpo é uma matéria erótica e criminosa por essência: “O Butoh é um corpo morto, frente ao desespero...” (Hijikata). Numerosos grandes temas do Butoh reúnem essa busca das origens a partir das polaridades: vida/morte, infinitamente pequeno/infinitamente grande, feiúra/beleza, masculino/feminino, a inocência, a criança, a mãe, o feto, o cosmos...sombra/luz. O Butoh, escreve T. Hijikata, é trevas, é luz, é a mistura dos dois. E, de um a outro, repleto de metáforas, torna o feio bonito, o obscuro luminoso, o absurdo grotesco. Diversos são os temas de uma poeticidade paradoxal que enriquecem o imaginário e os métodos sobre os quais o Butoh irá fundar suas bases.
Ligações sutis entre as diferentes dimensões onde estes temas se inscrevem abrem a trama da criação - ponto de relação dual fixada. Por exemplo: a sombra e a luz encontram a experiência do gosto, criam o elo obscuridade/gosto: comer doces no escuro, para Hijikata, os torna melhores do que comê-los à luz. O sentido do gosto privado da visão mergulha o ser no infinito deleite sensorial; o ser e o gosto em estado de fusão no escuro são uma dança por excelência. Esta proposta como esboço de treinamento da consciência, apenas constitui uma das muitas células que agem na dança. Unir-se a ela não significa mostrá-la. Todos os exercícios são uma prova para os sentidos. Acostumado a responder ao mundo exterior e social: “o corpo humano, desde o seu nascimento, é conduzido à domesticação para responder a esquemas sociais específicos. Para que a dança se cumpra, os esquemas, profundamente ancorados, deveriam ser radicalmente destruídos” (cf. “From being jealous of a dog’s vein”). Para garantir a extensão da massa vibratória e de memória da carne, o corpo deve ser posto à prova, levado aos limites, acuado, sacudido. Paradoxos e desordem também colocam o corpo à prova de seus limites. “Pôr as orelhas perto dos joelhos para melhor ouvir; sentir que nosso punho é o de outro; ver sem ver com os olhos, mas com um corpo feito de mil olhos, ou somente dançar com os olhos, ou só com a língua, pois cada parcela do corpo contém o corpo todo, e nenhuma parte habitualmente favorecida, notadamente os olhos ou a boca, é diferente uma da outra, de um artelho ou do seu sexo. Ser uma flor que bebe um raio de sol – o humano não é mais importante que um vegetal, pois ele é habitado de todos os seres e de tudo o que eles produzem, do ser vivo e de todas as suas dimensões, de fantasmas e espíritos, da memória individual, coletiva e ancestral. Um mundo sem diferenciação, sem dualidade, sem julgamento, estar no mundo da percepção (e não da lógica), como um bebê”.
O espaço-tempo do Butoh é a quintessência de uma dimensão espiritual, uma consagração além do cotidiano. Quase que como uma experiência estática, um tipo de transe animado por
emergências inconscientes que provocam, sem o conhecimento do dançarino, uma atuação em espaço grotesco, absurdo, dissonante ou, ao contrário, repentinamente de uma rara beleza. O corpo se estica, se crispa ou se dobra, abolindo todos os limites espaciais, para sair do tempo real em direção a um tempo original, um infinito criador. Emergem então diversas memórias que se apossam da carne. As imagens alimentando as sensações dão corpo ao movimento. Ohno escreve:
“Eu não penso que o corpo realmente se transforme, exceto quando ele é trespassado pela consciência da vida e da morte. É por isso que quando tento confirmar minha existência, devo tentar encontrar os traços de minha memória falha, até o ventre da minha mãe, local onde nasci. De todo o meu corpo, procuro então reintegrar todo o peso e a vertigem. Tal é minha consideração à vida onde a dança tem origem”. “Não podendo ajudar na criação do mundo, mesmo que da mais ínfima maneira, caí de costas, pés aos céus, como que de pé com a cabeça para baixo”.
Como pudemos observar, a palavra é um importante vetor da percepção no Butoh. Ela é uma vocalização das entrelinhas, uma tela entremeada entre as sombras, a linguagem da intercorporeidade. E as imagens do Dadaísmo ou do Surrealismo constituem um “contra- poder” da lógica domesticada: uma avalanche de palavras e imagens para acordar as células do corpo; em cada um, a lembrança da memória dos locais de infância em cada um, perfuram a carne, seja num plano físico, mental, ou cósmico. Para isso, nos ensinamentos de Hijikata, como no seu texto, ele favorecerá o uso das onomatopéias, universo sonoro particularmente desenvolvido na língua japonesa, o mais propício para compreender uma impressão do real e despertar a sensação corporal.
Existem várias maneiras de a chuva cair e, antecedendo o verbo, a onomatopéia vai dar o tom. A chuva fina que cai faz “chito-chito”; a chuva forte “zaa-zaa”; e na sugestão poética e musical
de Hijikata: “o som dos bichos da seda que mordiscam incessantemente as folhas da amoreira fazem ‘jyari-jyiari-jyari’; o ranger dos dentes ‘giri-giri-giri’; e enquanto que os bichos da seda continuam sua mastigação, o som é sincronizado com o do homem que dorme rangendo os dentes... tudo é ligado e se isso fosse sempre ligado na vida, como nesse caso, talvez não tivéssemos necessidade de treinos de dança,” propõe Hijikata.
E para ancorar estas impressões em todas as partes do corpo, jamais nenhum espelho irá deturpar o face a face interior do dançarino. Sem cessar, Kazuo Ohno recomenda aos alunos que o olhar deve ser parecido com o olhar mortiço de um peixe. A visão vem então como que periférica e sem objeto. Para Hijikata, a técnica dos “olhos revoltos” constitui um método que gera a perda de referências. A pupila desaparece, mostrando o branco dos olhos como uma tela vazia, sem sentido fixo, o que também lembra o olhar de um bebê. Ausência/presença, aparição/ desaparecimento. O dançarino ofuscado pelo exercício ocular sente uma perda do sentido do espaço material a favor de uma recriação do espaço nas suas dimensões múltiplas, rompendo com a percepção que diferencia o dentro e o fora. Mas Ohno não aderia a essa técnica. Para estudar o Butoh era necessário: “fazer o vazio. Estar cônscio de sua atitude com relação ao cotidiano, dos movimentos ordinários do dia a dia”. E por isso, ele dizia “é preciso desde já que um lugar exista em si mesmo; e este lugar indescritível, eu não saberia ensiná-lo”. Yoshito Ohno conta que seu pai era tão estruturalmente apaixonado pela dança, tão impregnado de seu imaginário, que lhe aconteceu, num dia chuvoso, de propor a seus alunos de educação física de se transformarem em rãs. (cf. “kazuo ohno’s world from without and within”)
Sem dúvida, pois como o escrevera Nietzsche um século antes: “é somente dançando que sei dizer, por metáforas, as coisas mais altivas”. (O canto do sepulcro – “Assim Falou Zaratustra”)

Conclusão

Pudemos entrever que o Butoh não é uma dança para a arte, mas para a vida; um estado de ser no mundo para a vida. E a vida para a vida. Uma saída não dualizada que valoriza o existente pelo que ele é, sem tabu, sem julgamento. Tornar visível o que a sociedade nega, asfixia, rejeita, mutila, “privando-o de suas faculdades de viver, o mistério da ‘pequena morte’”. E o Butoh inscreve-se na experiência da regeneração vital.
Com a distância, é interessante constatar que os fundamentos do Butoh são universais. Eles o são porque a consciência identificadora e suas particularidades jamais fizeram concessões à universalidade ocidental, para quem a idéia de universalidade sacrifica a diferença em favor do “igual”. Pudemos compreender, de fato, que o Butoh é um estilo tradicional japonês, que é nacionalista, religioso ou sectário, que é uma estética. É claro, cada um poderá debater ou argumentar, pois o Butoh está ligado aos seres que o conceberam em etapas no processo de sua elaboração, pondo em risco sua abertura aos estrangeiros. Mas é fato que seus ensinamentos, por meio de diversos métodos de aproximação – dos quais Hijikata e Ohno são as duas maiores fontes de transmissão – atingiram criadores e intelectuais do mundo inteiro. Sem dúvida, foi por carregarem a alma tanto quanto o corpo, por engajarem a profundidade da alma aos limites do corpo, tocando em todos os níveis de sua existência. Por não se tratar de parecer, mas de ser; não de estética, mas de vida. Uma ontologia fenomenológica. Mais do que dança, um “além” da dança, uma “não dança”, um erotismo do ser no mundo.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

J-Bloggin´

Blog sobre temáticas e interesses do Japão no Ceará...

http://blogs.diariodonordeste.com.br/diariootaku

http://lepouece.blogspot.com